Crítica do Livro “Textos feitos em momentos (in)oportunos”, de Dani Marques, por Marciléia Ribeiro

Não matemos leões

Matemos pois a realidade. É mais difícil, mas vamos lá! Sem muita conotação, a realidade é crua e instintiva, e afirmo: não há liberdade poética que enfeite os dias de uma alma que balança. É com muito Sol na cabeça que a gente galga cada passo rumo a não sei o quê – o passarinho de cada corpo sabe para onde voa. E foi numa tarde quente que eu engoli seco “Textos feitos em momentos (in)oportunos”, de Dani Marques. Pareceu chuva demorando a cair, mas caiu, e em tempo aberto, transfigurando sensações: foi um misto verdade, de reflexão, de medo e de esperanças. Naquelas palavras eu contemplei mais do que uma mulher que clama por algo grandioso – liberdade talvez. Lá eu encontrei uma mulher sendo MULHER, puramente mulher mesmo, indagando-se sobre coisas que para alguns parecem tão obvias e para outros tão inabordáveis.

A obra traz crônicas que reforçam a beleza e a dureza do existir, que inferem na leitura uma aura de “força selvagem” que nós mulheres sabemos bem como sentir. Dani Marques, no texto “Marisa Monte e a tevê do meu avô”, retrata muito bem a tão auspiciosa e genuína felicidade que nós seres humanos sentimos e vivenciamos de maneira silenciosa e reservada, às vezes por não compreendermos que as coisas mais grandiosas são exatamente esses momentos de puro êxtase existencial. Em outras palavras, essa sensação também pode ser alcançada em “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, que nos revela a beleza de ter aquilo que é tão desejado. Vejamos:

“Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia… ‘As reinações de Narizinho’, era um livro grosso meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele… Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão… meu peito estava quente… Não era uma menina com um livro, era uma mulher com seu amante…”  Clarice Lispector

 

“Era domingo e meu pai estava à procura de uma tevê pro meu avô… Era num condomínio, fomos anunciados e ela nos recebeu… Eu não estava preocupada com a tevê, isso é assunto dela com o meu pai, me interessou a pilha de cd’s… Fiquei ouriçada, conhecia pouco dela… Voltamos os dois felizes… Passei a semana inteira me deliciando com aquele cd…”  Dani Marques

Descrevendo a realidade como quem escreve na própria pele com ponta de agulha, os textos de Dani prosseguem desmistificando a lida da mulher/mãe artista, que se desdobra para encontrar tempo e espaço para produzir, tentando salvar-se de um sistema opressor que inclui as mulheres em um caminho pedregoso e misto de impossibilidades.

Devemos nos questionar por qual razão é tão difícil para as mulheres exercerem em paz seus dons artísticos?

Sim, embora a resposta seja tão óbvia e dura de aceitar. A cada criação um leão é morto. E quando deixaremos de matar leões? Quando uma mulher/mãe/artista poderá imergir profundamente, sem interrupções, em prol de suas outras crias? O texto “Eu, Virgínia Woolf e a falta de creche” nos insere nesse patamar de questionamentos e respostas claras, que as mulheres/mães, solos ou não, sabem muito bem com responder. Título louco? Sim! E ainda me atrevo a dizer que o coletivo de leão é “LEOAS”. Isso mesmo: Leoas! Se não é uma questão de gênero, não matemos leões, pois. Ideias temos de sobra.

“A ideia brota”, mas quando se é mãe solo a ideia se transforma às vezes. Vira preocupação elevada ao cubo; Não dá mais para romantizar a maternidade, nem devemos. Dói! Dói ainda mais quando a responsabilidade que deveria ser dividida recai e se multiplica sobre a mãe, como diz Dani: “Não é legal ser ‘pãe’, na verdade dói; O patriarcado e o machismo permitem que esse tipo de termo apareça…” É válido, portanto, relembrar: nunca chame uma mãe de “pãe”, ela é mãe. Apenas!

E foi numa tarde quente, como se fosse um Sol na cabeça, que a leitura aconteceu; Mas teve chuva caindo para embalar. Conheci também Iasmin, personagem importantíssima na história, que com seus olhos de verdade e seu sorriso de luz consegue enfeitar de poesia a realidade escrita e marcada em “Textos feitos em momentos (in)oportunos”, oportunos demais, digo. Vale a leitura. No final, a gente sabe quem salva quem. A gente se permite andar pelo caminho escuro do amor porque é na escuridão que o feixe de luz cresce. Que cresçamos na esperança de não termos mais que matar leões.

 

“Solidão é o lugar-comum de toda mãe.” Dani Marques

Texto escrito por Marciléia Ribeiro

Sobre a autora:

Idealizadora do fanzine “Desembucha, Mulher!”, lançado no dia internacional da mulher de 2018. Reunindo proza e poesia de mulheres piauienses, a publicação conta com autoras estreantes e outras já publicadas. Em junho, lançou a segunda edição no Salão do Livro do Piauí. É mediadora do Leia Mulheres Teresina, clube de leitura presente em todo o Brasil que realiza o debate de obras escritas por mulheres. Tem textos publicados no site da Revista Revestrés e na Antologia do Mulherio das Letras. Leitora voraz, mora em Teresina e é mãe da Iasmin de 6 aninhos.

(Biografia disponível e retirada da obra.)

Sair da versão mobile