Atalhos, de Ilzy Sousa

Para ouvir (não necessariamente com o conto): Man in black – Johnny Cash

Coletava pequenas alegrias aleatórias ao longo do caminho do seu ônibus de todos os dias. O sorriso travesso do menino que saia da escola, o brilho das uvas grandes da barraca do mercado ao sol de meio dia, o mototaxista que ajudava um velho a colocar o capacete, o vento que só era fresco as margens do rio que banhava a cidade e o bebê no colo da mãe acenando para o avião. Fazia nota mental de todas elas. Roubava as alegrias alheia para manter-se sensível ao mundo.

Suas preferidas eram as pichações dos murros da cidade, especialmente os atalhos. Eram desenhos borrados de portas, cada uma com a indicação de pra onde levariam. Atalhos para a solidão, a felicidade, a audácia e, sua preferida, para a sedução – que ficava na avenida conhecida como palco de toda lascividade assim que o relógio vomitava a meia noite.

Os murros discursavam para toda a cidade surda. Contava suas verdades. Ela gostava de tudo que aparentemente ninguém notava. As vezes, quando não encontravam nenhuma nova alegria para coletar pela janela, virava-se para os seus companheiros de caminho.

Todos os dias, no mesmo horário, os mesmos desconhecidos se reuniam numa confraternização tácita. Ela, de tanto observar, já havia decorado a parada e o jeito da maioria deles. A moça de cabelos curtos que subia próximo ao rio sempre descia perto do supermercado do outro lado da cidade. O gordinho gentil sempre cedia a cadeira para mulheres quando o ônibus estava lotado. O velho morderninho com seus fones de ouvido que estava sempre muito interessado em algo na tela do celular.

Gostava de dava bom-dia baixinho para o motorista quando subia. Na primeira vez em que ele lhe ouviu, recebeu com um susto o cumprimento, mas agora a presenteia com um sorriso tímido de quem nunca é notado. Ela gostava de cumprimentar os profissionais invisíveis para coletar seus sorrisos tímidos – o motorista de ônibus, o guarda, a faxineira da universidade e o porteiro do prédio.

Gostava também de conversar mentalmente com o seu companheiro de banco. Era tímida demais para falar realmente, então montava toda a personalidade dos outros e ia-se por todo o caminho roteirizando uma conversa divertida. Os tímidos costumam ter uma imaginação incrível para preencher as lacunas que a vergonha não lhe deixa expressar verbalmente.

Hoje, sua companheira era uma senhora bonita de seus 26 ou 27 anos. Estava grávida. Ela tinha aquele brilho na pele que só futuras mamães têm. A menina quis pedir para escutar o bebê na barriga. Quis perguntar o sexo, a expectativa e os incômodos. Quis dizer que adorava bebês, embora morresse de medo de ela mesma ter um. Imaginou a grávida respondendo que estava muito feliz, mesmo que precisasse acordar dez vezes na noite para vomitar e já enjoasse até do perfume do marido. Que era menina e se chamaria Teresa em homenagem a avozinha que nunca conheceria.

Mas, não teve a oportunidade. A grávida levantou-se subitamente e desceu. Deixou-a apenas com um pequeno sorriso, daqueles que os desconhecidos trocam quando precisam levantar do lado do banco que fica na janela. A menina afastou as pernas pro lado. O banco ao lado voltou a ficar vazio e não outras alegrias pra coletar.

Deslizou para o lado da janela. Era mais fácil coletar alegrias assim. “O sensual é invisível aos olhos” dizia outro murro. Concordou. Coletou. Observou novamente o ônibus e pode pegar a entrada dela.

Era uma dessas meninas de cabelo preto e idade parecida com a dela. Passaria totalmente despercebida, caso não fosse o cheiro e o jeito. Ela cheirava a problema, aparentava problema e dava pra sentir isso mesmo ali da cadeira alta. Vestia calças skinny vermelho xadrez e uma camisa preto com sombras toscas dos Beatles pintada a mão – talvez por ela mesma. A menina não sabia se gostava mais do cabelo, um preto longo, com algumas ondas e raspado de um dos lados, ou da tatuagem de tentáculos de polvo que envolvia todo o braço esquerdo e desaparecia pela camisa.

Por um segundo, a menina imaginou até onde o polvo iria.

Sensual. Invisível.

Desejou não ter pensado nisso.

Não gostava de ser esquisita.

Não que ela de fato achasse esquisito. Era o que a maioria das pessoas diria. Porque achar outra garota sensual? Era errado. Era esquisito. Mas, de fato, ela achava. A menina gostava de olhar outras meninas caminhando. Elas tinham um jeito hipnotizante de deslizar com suas calças skinny e bustos que dançam.

Por vezes, a menina chegou a questionar suas preferências. Ela já havia namorado duas vezes, mas nada realmente sério e decididamente não procurava imaginar o que havia dentro das camisas e calças dos namorados. Tampouco se importava com o que havia dentro das próprias calças. Eram outras que lhe interessavam, mas ela preferia guardar isso só pra si. Era mais seguro. Ou pelo menos era o que ela gostava de pensar.

Estava tão distraída que nem percebeu que a outra garota havia sentado do seu lado. O cheiro de problema era ainda mais forte dali. Ela observou-a sentando e recebeu um sorriso dela. Virou-se imediatamente pra janela antes que a menina pudesse observar seu rosto ficando vermelho.

– Tive sorte desse banco estar vago – ouviu-a dizer. Fez um “uhum” baixinho com a garganta. – Então… Você também gosta do Johnny Cash? – ela perguntou. Tinha uma voz macia e parecia realmente feliz com a situação, como quem encontra um conhecido. Ninguém jamais falava com a menina no ônibus, nem reparava nas suas camisas. Ela virou-se para o olhar da menina. O lado do cabelo raspado contrastava com os fios longos do outro lado e os traços finos e delicados dela. Era mais bonito ainda de perto.

As pessoas bonitas acentuavam ainda mais a timidez da menina.

Ficou tão encantada e temerosa com a beleza da outra que só conseguiu concordar com a cabeça. – Qual sua preferida? Eu realmente gosto de “Man in black” – ela murmurou a música com a garganta enquanto exigia sua resposta através dos seus olhos cor de canela. – Hurt – respondeu baixinho e quase sem voz. Devia estar parecendo patética. – Ah! Gosto dessa também! A letra não é dele, mas não existe ninguém a quem a música pertença mais que ele, não acha? – a menina deixou escapar um pequeno sorriso quando a viu sorrindo daquele jeito. Ela tinha um daqueles sorrisos que fazem você querer sorrir junto com ela.

Coletou o sorriso dela.

E os olhos, o jeito simpático, os traços delicados, a voz macia.

– Você não é de falar muito. Se eu estiver incomodando é só avisar, faço isso com frequência. – ela disse, naquele tom de quem pensa alto. A menina quis dizer que a última coisa que ela estava fazendo era incomodando. Quis elogiá-la pelo cabelo, pelo gosto musical, pela calça xadrez que realçava o quadril bonito. Quis dizer que gostava do jeito dela. Imaginou-a sorrindo novamente. Quis chamá-la perguntar seu nome, qual curso ela fazia, o que diziam sobre o cabelo raspado. Imaginou-a respondendo que não se importava com o que as pessoas diziam, que fazia música. Só não conseguiu imaginar o seu nome.

Perdeu-se em pensamento por tanto tempo que esqueceu de respondê-la. Quando voltou a si, a garota já estava levantando-se. Quis segurá-la, perdi o seu celular, descer junto com ela. Não fez nada. Apenas observou-a sorrindo como quem se despede e sorriu de volta. A outra garota parecia satisfeita com aquilo.

Observou-a pular fora do ônibus com um único pensamento: se ela quiser, poderiam dividir o banco e os gostos todos os dias. Quem sabe mais.

NOTA DA AUTORA; Apenas para informar algumas boas coisas:
– Tenho andado muito de ônibus. Observando mais, escrevendo tremidamente do meu banco.
– Ganhei uma bolsa para morar em Portugal por seis meses começando em março/2015. Minha inspiração nunca esteve tão feliz. Estou resolvendo os primeiros passos pra viagens, por isso o layout novo não ficou pronto para hoje.
– Quis começar a ampliar o conceito de escrever sobre todo tipo de amor por aqui. Espero ter acertado a mão no tema, no jeito e na escrita.

Por: Ilzy Sousa

Fonte: ilzysousa.blogspot.com

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