A Cidade em chamas, por Paulo Henrique Alves Ferreira.

O livro A Cidade em Chamas, de Afonso Lima, constitui-se, a meu ver, em uma obra de peso da literatura piauiense, merecendo figurar entre os clássicos da rica produção da Terra do Equador. Uma obra encorpada, contundente, emocionante, fulcrada em meticulosa pesquisa histórica e que carrega a marca de um poema trágico que denuncia um crime impune. Um crime que tingiu de fuligem as mãos oficiais e que contrapôs, numa relativização perversa, os valores da vida de um lado e a estética urbana do outro.

O livro pode apresentar certo hermetismo se lido sem um conhecimento mínimo dos acontecimentos da década de 40 do século XX, na cidade de Teresina: os incêndios criminosos que devastaram a cidade por pelos menos seis anos (de 1941 a 1946).

Com a alternância de ritmos em seus versos, ora mais ora menos musicais, o autor nos compele a uma leitura dinâmica, numa narrativa poderosa que nos arrasta pelas páginas entre as cinzas, as chamas, o tempo histórico negado, os corpos carbonizados, as lágrimas dos desabrigados e desvalidos e a omissão complacente do poder público. Expõe em quadros dantescos o sofrimento das vítimas, mas sem descurar da sensibilidade que a tragédia humana inspira ao coração. Doutro lado, denuncia as contradições e temeridades da ação policial que circundou os incêndios criminosos, além das omissões das demais autoridades do Executivo e do Judiciário, descrevendo uma coleção de fracassos e covardias dos donos do poder que ao observador sério e isento somente poderia traduzir o sentimento da vergonha!

Não obstante a recorrência de cenas ao longo do livro, o poeta consegue fugir do que poderia ser uma armadilha da mera repetição dos fatos narrados, dando contornos muito próprios ao longo do livro, seja por fixar datas e acontecimentos históricos, seja por temperar a abordagem com as vivências e sofrimentos profundos de personagens singulares descritos de forma emocionante.

O livro foi dividido em dez movimentos, talvez pela veia teatrológica do poeta. A seguir passo a comentar cada um dos dez movimentos do livro.

PRIMEIRO MOVIMENTO (Teresina Chora)

No primeiro e breve movimento o poeta inicia a poética e trágica narrativa, datando o seu início em 1941. Aqui já se percebe o tom de denúncia que a narrativa tomará: um crime impune. Pelas ruas, além da “chuva cálida” serpenteiam chicotadas.

Alguns nomes são ventilados, como o de Evilásio (chefe de polícia), Getúlio Vargas (presidente do Brasil) e Leônidas (Interventor, governador) de um lado e Luzia e suas carnes gastas de outro, num tempo em que não se permitia verdades. Muitas estórias foram contadas para informar e para desinformar. Tramavam-se nos gabinetes os passos da piromania. Encapuzados empunhavam tochas.

A narrativa é forte e beira à crueza em certos pontos da descrição do sofrimento humano: “meu filho, Deus, meu filho é cinzas!”

Nesse movimento o poeta diz a que veio, sustentando um ritmo forte e poderoso com que irá alavancar os seus versos por toda a obra.

O panorama já fora delineado e Teresina chora!

SEGUNDO MOVIMENTO (Teresina contempla a dor dos seus filhos)

Nesse segundo e emocionante movimento, o poeta fala da dor dos filhos de Teresina, iniciando pela mais célebre das personagens no status que lhe empresta o autor. É LUZIA das carnes gastas e peitos caídos, que perdeu o filho para as chamas e enlouqueceu. Nesse movimento o clima de denúncia de um crime impune toma proporção ainda mais clara. Segundo o poeta, Estadista e seus discípulos, por maldade ou ilusão, pensavam acabar a miséria que habitava a cidade empobrecida. Belíssimo trecho (p. 30) merece destaque:

“A criança de Saraiva agoniza
Cidade débil no fumo basto
Queda-se, contorcendo a dor
Ante seus filhos, animais sem pasto
Encurralados pelo terror
Que ia tragando casa após casa
Assassinando e deixando o rastro
Nos corações, fornalhas de torpor”

 

Edasima e Domingos aparecem como autores materiais dos incêndios: “importaram água, calor…”. O povo clama: “É Evilásio! É o governo o dono desta mão!” O casal é preso em flagrante. Inquéritos são forjados e a ação da polícia torna-se mais violenta. O casal era protegido do interventor: do Karnak telegrama voa ao Tribunal de Segurança. Os juízes vagarosos retardam, esperam… autos são guardados. O processo sobe ao Supremo e retorna com a decisão de que a competência é da 4ª Vara de Teresina, onde são arquivados. A revolta do povo cresce. O misterioso desaparecimento de Edasima e Domingos só corrobora a versão de que o governo tinha envolvimento com os incêndios… Mais uma estrofe pra destacar porque de beleza ímpar:

“A revolta cresce
E do alto da Jurubeba
O negro santo
Olha os escombros da Chapada
Enquanto, ao longe, pairando sobre o Parnaíba
Domingos e Edasima desaparecem”

O poeta passa a descrever o que chamou de uma trégua, ocorrida no ano de 1942. “Uma trégua te oferece os gabinetes de Antonino Freire”. Aqui de novo recorre a LUZIA que não havia como sentir aquela trégua, aquela paz que se ensaiou naquele ano. Em seu olhar vago só cabia as lembranças da perda irreparável e a loucura que transparecia.

Nas gavetas do palácio, nos papéis da polícia, nos arquivos da justiça, ensaiam-se esquecimentos. As marcas, contudo, restam, no silêncio, nas lágrimas, na saudade dos que pereceram, tudo isso inscrito na carne das vítimas, jamais esquecidos.

O segundo movimento se encerra de modo genial. O Brasil havia declarado guerra à Alemanha. Diz o autor: “o Brasil outro inimigo tem, não mais as palhoças nem seus filhos desvalidos…”

 

 

TERCEIRO MOVIMENTO (a fala dos bairros)

O terceiro movimento retoma o ritmo cheio de paixão com o que o autor denuncia o crime impune. “Um rio de lavas que esteriliza tetos e corpos limpa ruas e bairros com labaredas de Hefesto”. É a seleção artificial como projeto de urbanização da cidade.

O ano agora é 1943, os incêndios retornam, e o terceiro movimento parece apontar para a congruência cronológica entre um ano e um movimento do livro. Nesse momento o poeta explora a dimensão que os incêndios alcançaram, irradiando por inúmeros bairros da cidade. “Os casebres de palha enfeiam a cidade”.

A ação da polícia tornou-se mais violenta em 1943. A palavra “fogo” fora proibida, surgindo a vergonhosa senha “chuva” que ironiza a aflição. Vão crescendo as tramas e se enchendo as cadeias. Grilhões, fome, sede, tortura… Formam-se delatores, compravam-se opositores. O autor reforça a ideia da limpeza social dos incêndios e as tramas políticas subjacentes.

A ameaça comunista (são eles, os vermelhos, Carlos Prestes) é também mencionada na versão do governo como provável autora dos incêndios. Teresina era iludida e destruída.

QUARTO MOVIMENTO (Teresina é torturada)

O quarto movimento – que ainda se passa no ano de 1943, desligando os movimentos do livro do transcurso de um ano – se inicia com o desfile daqueles aprisionados pela polícia. O autor declina inúmeros nomes de presos e torturados. “Arrastados pela madrugada iam-se indo, carimbados, aprisionados, carregados, sufocados...” rumo a três destinos: “Cruz do Cossaco”, “Três Paus” e “Ilhotas”. Os pontos de tortura usados pela Polícia.

“… Vão-se cortando, Feitosa e Luís
Lídio e Hilário, cortando se vão
Sem sulfa, sem médicos
Sem voz, sem defesa
Espancados no mato
E voltando à prisão
Vão-se cortando unhas e carnes
Peitos e dedos, cortando se vão
Buscando o culpado, o mandante, o faísca
O senhor da fogueira que abrasa a cidade”

 

O poeta destaca a fraqueza da carne torturada que é obrigada a confessar o que não fez e a delatar inocentes, mas também a indignação de quem sofria injustamente. “ – é Cândido Ferraz, Hilário bradou”. Contudo, antes que o corpo atingisse seu limite outro autor foi apontado “… é o Prefeito, Hilário clamou”

Com a prisão de Ferraz arma-se o circo, o palanque se ergue. Os incêndios viraram crimes políticos atribuídos aos que eram contra o Interventor.

Enquanto Manoel Gomes Feitosa (um miserável filho de ninguém) se avizinha da morte pelas refregas da tortura, o preso doutor (que não era desvalido) consegue sua liberdade! E um possível epitáfio de Manoel Gomes Feitosa poderia ser (p. 72/73):

 

 

“– que fez nesta vida?
–  quem te condenou?
–- o mundo, a pobreza
A fome, o pavor 

– que história deixaste?
–  quem te violentou?
– Evilásio, a maldade
O governo, doutô…”

 

Manoel Gomes Feitosa morre e “ninguém o escuta nos suspiros do fim… só a morte o espreita com a foice do astral…” Quem o matou? O povo pergunta. A resposta da polícia é que foi a febre tifoide. Novo chefe de Polícia é nomeado: Benedito Lopes, carioca. Logo se enreda nas tramas usadas. E Manoel Gomes Feitosa já não tem palavra…

QUINTO MOVIMENTO (Teresina Vagueia Alienada)

O ano de 1944 anuncia o quinto movimento do trágico poema. A hora e a vez dos loucos que surgiram das tramas e traumas dos incêndios criminosos sanitários.

Poderia ser resumido em: carregam-se telhas/progresso cidade/fala baixo cidade/desenvolve cidade/descansa cidade/acorda cidade/pensa cidade/perdoa cidade/é loucura cidade/cuidado cidade/recorda Chapada/é tarde Chapada/tristes olhos, Chapada…

O poeta aborda o estado de angústia e inquietação que a cidade respirava… Multidões de loucos se acotovelando sob a guarda do médico psiquiatra Clidenor de Freitas. A cidade vive momentos de reconstrução, piedade, perdão, esperança… Algumas vítimas dos incêndios são novamente nomeadas: Maria Engomadeira, Chico Aleijado…

Os loucos também enfeiam a cidade. Belíssima estrofe na p. 93:

“Tristes olhos, Chapada
Te espreitam famintos
Buscando a cura
Pros males sem fim
E se a noite é eterna
E o tempo é molhado
Transforma teus loucos
Em teus querubins”

 

Neste movimento em que a loucura baila, descreve o poeta, antes do fim, uma cena intrigante, dantesca, em que os loucos misturados ao centro da roda obravam toda a sorte de desgraças que giravam em torno da violência e do sexo… Uma espécie de bacanal entre miseráveis alienados demoníacos. Um verdadeiro baile no inferno!

O movimento se encerra trazendo um pouco de paz que o dezembro natalino costuma conduzir. Os psicóticos foram sumindo (das vistas da civilidade, ao que tudo indica), “guardados no abrigo da mãe caridade e mais além, após o perímetro permitido, amontoam-se indesejáveis..”

 

 

SEXTO MOVIMENTO (Teresina Sitiada)

O sexto movimento se inicia com o traçado do poeta sobre uma Teresina bela, mas trágica, louca e triste. Na p. 107 uma estrofe belíssima em que o poeta pinta Hefesto, seu plano maligno, e toda a sua glória sobre a cidade arrasada:

“Magistral foi o sonho de Hefesto
Ao pensar a cidade consumida
Fez decretos, leis e manifestos
Ao conceber a urbe destruída
E montando em sua bela hiena alada
O deus das chamas levanta a mão da morte
Proclama a cada ser a sua sorte
Nas palhoças da cidade sitiada…”

 

Mas o ano de 1945 chega em um janeiro de clara manhã e traz sentimentos de esperança em Chico Aleijado. O Estado Novo começa a ruir, a censura começa falhar, o movimento democrático vai ganhando força.

Treda foi a esperança, porém! A “chuva” retorna! As cenas de destruição voltam a se repetir. “É Nero que volta erguendo a pira/ardendo nos veios da devastação”.

Aqui também o poeta exalta a heroica atuação de estudantes que lutavam com as chamas entre as vítimas para salvar-lhes pertences e vida.

O poeta também dedica preciosas linhas sobre Chico Aleijado em sua angústia que não pode ser contida nem mesmo pelos personagens de sua Crença Africana. O tempo passa enquanto ele torce para que não chegue a sua vez de arder: “ninguém o alivia na combustão e sem forças desiste de qualquer reação…” Chico Aleijado também merece um epitáfio (p. 121):

“ – catástrofe é luz
Quem te sufocou?
– a política, a miséria
o cansaço, o terror…”

Chico Aleijado é tragado pelas chamas enquanto sua mente lhe acode com doces recordações da infância…

SÉTIMO MOVIMENTO (Infeliz cidade)

O Brasil vai mudando. UDN e PSD vão trocando farpas na luta pelo poder. Soldados mancos retornam das refregas da segunda guerra mundial. Mas o sofrimento dos filhos de ninguém continua. Nada muda no destino das vítimas das chamas.

Surge um líder social: Luís enfermeiro.

“O Luís Enfermeiro
Atiça a pobreza
Ilumina as vielas da cidade arrasada
Com o corpo marcado pelos chicotes
As mãos agitadas o peito erguido
Conclama a cidade
A não se calar
As pernas rasgadas
Os braços feridos
Gritam verdades
Que cortam o ar”

O poeta abre um parêntesis para relatar como na Palha de Arroz os prazeres da carne faziam operários esquecerem os dias ardentes ainda que em momentos fugazes do sexo.

Enquanto isso Luís Enfermeiro:

 

“faz reunião, alivia tormentos
Mostra o castigo policial
Nas mãos deformadas que espalma ao léu
É o baluarte da oposição…”

 

Getúlio Vargas é deposto. O poeta retrata aqui a variedade de sentimentos diante desse fato: comemoração de uns, decepção de outros.

Enquanto isso a sucessão estadual começa. Novo interventor é nomeado. Leôncio Ferraz, parente de Cândido Ferraz, que, preso em 43 acusado de ser mandante dos incêndios, agora gozava de prestígio e poder. O povo se agita na recepção do novo Interventor. Belíssimo trecho merece destaque, em que novamente São Benedito é utilizado para apresentar a percepção da cidade:

“no Alto da Jurubeba, o tostado santo
Espia, desconfiado, a arrumação
É tanta gente que berra, tanto grito incontido
Que espicha o olhar querendo entender
Enquanto a comitiva caminha devagar…”

 

O autor também descreve a comitiva do ex-Interventor que, deposta, deixa o poder sob os apupos do populacho.

1945 vai terminando. A cidade começa a entrar em mais um ciclo de esperança que se aproxima com o período chuvoso.

OITAVO MOVIMENTO (Um oceano de brasas)

Esse movimento é, de longe, o mais emocionante! O poeta começa por destacar como o tempo e as memórias se vão. Aos filhos de ninguém não é concedido o direito à História! O novo Interventor demora-se pouco em sua função e é substituído por José Vitorino Correia (“… de pesados coturnos se hospeda em Karnak”). UDN e PSD seguem em seus conflitos pelo poder. A violência da polícia volta com o início de 1946 e no mês de julho volta a queimar a “chuva”!

A Palha de Arroz é a bola da vez dos incêndios, não bastassem a fome, a lama, a miséria, a sífilis, a prostituição como mazelas já presentes.

Nesse oceano de brasas o poeta pinta, a meu ver, os seus mais belos quadros. É a história de Raimunda Lavadeira que perde sua filha Ritinha para as chamas… Não há como fazer qualquer citação entre as páginas 158 e 167. É preciso lê-las, verso por verso, com calma e envolvimento, e se deixar levar pelos versos belíssimos que o poeta constrói em sua alternância de ritmos. Retrata a angústia da lavadeira que deixava a filhinha em casa enquanto descia ao rio para lavar roupas. Nas ocasiões de incêndio corria em desespero para consolar-se nos braços da filha viva. Até que um dia as chamas alcançam sua pequena cria, semente deixada pelo macho bonito que a encantou um dia. Os versos exploram sua angústia, mas intercala as memórias que Raimunda tem de sua filha, a quem o seu mundo e seu amor se resumem. Mesmo o pai ausente é relembrado em momentos de prazer em que conceberam a pequena: os amassos de fogo de Zezé! As chamas tragam a filha de Raimunda e esta é pela loucura consumida. Difícil conter as lágrimas na leitura…

NONO MOVIMENTO (As ruas do inferno)

Inicia-se o nono movimento e logo nos primeiros versos o poeta parece fazer que o “eu poético” passeie pelos profundos e contraditórios sentimentos dos “filhos de ninguém”. Veja-se p. 172:

“…Revive-se devagar velhos conceitos
intocáveis, irrealizáveis… 

(…) e depois fala-se tanto em liberdade
Que ao olhar estes corpos à margem do rio
Nota-se a vasta sabedoria dos grilhões…”

 

Obviamente o poeta não é um apologista da tirania ou da escravidão. Como dito acima, o “eu”, pelo que se percebe, passeia pelos contraditórios sentimentos das vítimas dos incêndios que, amando mais a vida que a liberdade, sacrificariam esta última para não perecerem nas implacáveis e inafastáveis chamas de Hefesto. Pensamentos que flutuavam, à sombra das figueiras, às mentes dos combalidos…

Nas ruas desse inferno vagavam os infelizes desabrigados.

Quão tocantes os versos seguintes:

 

(…) e Raimunda Lavadeira
Passeia entre os retirantes
Retirantes da terra
Retirantes de abrigo
Retirantes de delírios
Que andam na ponte transparente de seus abismos…”

 

O poeta retoma o tom da denúncia do crime impune ao trazer a figura do Padre Freitas Santos e sua carta dirigida ao Presidente Gaspar Dutra. A polícia antagoniza e hostiliza o padre e sua igreja: padre tarado, igreja que mente! O pedido do padre é atendido pelo presidente que encaminha forças federais para investigar os crimes dos incêndios.

Tudo, porém, deu em nada. Nem presidente, nem federais, nem interventor apagaram as cicatrizes. E a loucura de Raimunda passeia pelas ruas, cuja eloquência e “racionalidade” não há discurso oficial que possa infirmar. Novo destaque, p. 179:

 

“… Raimunda enlouquecida solta impropérios
despeja esconjuros e beija, sentida, os braços vazios
acusa políticos, agride passantes
e desfila, impudente, nas ruas centrais
na estrada irreal que percorre
Raimunda despudorada afronta purezas
escancara suas dores
e escandaliza a cidade com a vagina desnuda
maldiz a polícia, debocha de Deus
e amarrada, nos espasmos de raiva
é trancada no abrigo dos alienados…”

 

Recrudesce a violência policial no ano de 1946. São as mesmas cenas com outras caras. A” Gestapo Evilasiana” parece ressurgir das sombras do passado para novamente por em momento as máquinas da tortura. Outras são as vítimas torturadas, mas de igual matéria feita: pessoas simples, sem expressão, meros pretextos para uma ação policial cúmplice ou temerária.

O poeta destaca as novas cenas de um passado repetido. Aqui a covardia dos juízes ganha outros contornos jurídicos, suspeições, incompetências… habeas corpus negados, nem conhecidos sequer… E Luís Enfermeiro, Hilário, Ângelo e tantos outros amargam a tortura e a solidão nas celas escuras da pseudo investigação.

Gaspar Dutra designa novo Interventor, mas nada muda:

 

“… Muda o vento
A farsa
Muda interventor
Muda a mão
A caneta
E não muda o terror
Muda a mesa
O cavalo
Mudam os cabedais
Muda a farda
As esporas
Mas não os policiais…”

 

Nesse triste quadro em que somente a violência, a destruição e o sofrimento triunfam, a vergonha é o principal sentimento que aflui como a resultante dos vetores do fracasso dessa experiência de vida em coletividade.

O poeta nos premia com versos de beleza profunda no fim do novo movimento. Destaco, p. 191:

 

“… nos quintais cinzentos
As árvores chamuscadas desgalham-se
Assustam passarinhos, destoam a vida
E agonizam no solo ressequido da Teresina oprimida
(…)

E de longe em longe
O pregão tímido dos ambulantes
Oferece tristezas nos tabuleiros
Envergonhado da existência 

Cocada
Alfenim
Pirulito
(…)

… e até as pedras de cantaria
Os beirais e nichos
Os paralelepípedos
O sol
O vento
O luar e as estrelas
Encalistrados
Se escondem no breu da noite trágica…”

 

DÉCIMO MOVIMENTO (O silêncio da memória)

 

1946 é ano de desgraça, mas é também o tempo do fim do martírio candente na fogueira de Hefesto.  O povo à custa de seu sangue, suor e incrível capacidade de resistir, teimava em procurar a esperança entre as cinzas e covas da tristeza ou da loucura…

Na volta das chamas e da repetida violência policial, a vergonha pareceu transbordar das percepções do observador compadecido e das vozes de protesto que se erguiam, para respingar nos Faícas, nos Neros, nos urdidores do ardente e macabro plano progressista. As chamas cessaram ou diminuíram até que o vento do tempo as apagasse. Mais um destaque, p. 208:

 

“(…) mas nos olhares da cidade
Gravada nas paredes
Nas árvores
Nas chagas abertas na terra
A memória vive
A memória pulsa
A memória berra deformando a vergonha
E o eco surdo daquele tempo
Desenterra cadáveres
Para iluminar os caminhos do presente…”

 

A cidade renasceria nos anos subsequentes graças aos “filhos de ninguém” que são filhos de “alguém”, são filhos da cidade que, como mãe acolhedora e protetora, sofreu e padeceu com cada um deles. Último destaque, p. 209:

 

“(…) o labor incansável dos estivadores
A alegria irreverente das mulheres do cais
A força bravia de pedreiros, carpinteiros
E tudo e todos
Se uniram na desgraça
Refeitos no sonho do solar reerguido
E murmúrios e cantos e agitos e músicas
E rezas e danças enfrentaram major, interventor e prefeito
No país dos “filhos de ninguém”…”

 

O livro é uma tentativa do poeta de reconstruir e compartilhar os contornos dos tenebrosos fatos daquela década de 40. De testemunhar a coragem, a dor e esperança de uns e a assombrosa covardia e insensibilidade de outros. Neste último movimento, os heróis martirizados cavam de suas tumbas – através de olhos e ouvidos que se negaram fechar – não os aplausos ou o cetro glorioso, mas a verdade! E um por um o poeta os devolve aos seus lugares devidos, erguendo seu Panteão. Concede-lhes voz, inda que rouca e distorcida, memória, inda que entre brumas e silhuetas; e história, enfim, subtraídos outrora, desgraçadamente, dos filhos de ninguém: “Batizados na escuridão das distantes matas”, “nas águas da firmeza e da coragem”, “na luta dos discursos do povo”, “nas labaredas dos olhares atônitos”, “nos golpes de pneu cortantes”…

 

Sob impulso dos seus versos – “Alavanca de Arquimedes” – o poeta realiza um arremesso cósmico de sua mensagem, uma palavra que corta o céu do silêncio, a cortina da indiferença, o muro do esquecimento, e ganha o espaço infinito numa síntese rubra e precisa… FOGO!

 

Teresina, novembro de 2018.

 

Paulo Henrique Alves Ferreira

Piauiense natural de Elesbão Veloso
Formação: Direito UFPI
Analista Jurídico do Ministério Público da União.

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