Cinco e meia da manhã. Os primeiros raios solares despertaram Maria da Silva que acordou atônita e deixou a garrafinha d’água cair no paralelepípedo da Praça Pedro II. Quem diria que cochilar fosse maltratar tanto um corpo de uma artista renomada? Para falar a verdade disseram e quem disse foi o morador de rua que passou na porta do Theatro 4 de Setembro no exato momento do incidente, ele recolheu a garrafinha d’água e devolveu à proprietária.
Teimosa e com nojo do rapaz, a mulher fez o que sabia fazer de melhor: ignorou a existência da figura. Continuou apoiada nas paredes rugosas do teatro e deixou propositalmente que a garrafinha – agora contaminada – caísse e se perdesse na rua. Por ordem de chegada, ela era a quinta pessoa da fila. Jamais imaginou que ao sair de casa às três e meia da manhã encontraria alguém já acampado na porta do teatro, mas encontrou. Sua frustração por não ser a primeira compradora fora substituída pelo alívio de não ficar abandonada naquele lugar inóspito.
Os vultos que circulavam vagarosamente as imediações da praça vez por outra assustavam a compradora nutrida pelos seus preconceitos. Não passavam de sombras que observavam, distantes, a movimentação na praça, pobres almas arrastando-se pelas vielas da vida durante a noite, em busca das sobras de qualquer material orgânico comestível descartados diariamente pelos restaurantes.
Obviamente Maria não viu nada de humano no morador de rua, sequer pensou nas dificuldades enfrentadas pelo sujeito, ela só queria apreciar o seu show e degustar do melhor da sensibilidade humana presente na sublime arte. A música tinha esse efeito, fazia com que ela se sentisse humana, mais sensível e mais integrada ao universo. Olhou de soslaio o meliante enquanto tentava esconder o celular dentro da bolsa.
O cansaço pegou a nossa personagem desprevenida, a garrafa de café mal durou uma hora e a cafeína que deveria apartar o sono fora consumida em questão de segundos pelas malhas de Hipnos.
Cinco e meia, o despertador tocou, seis e meia ela acordou e amaldiçoou o celular. Olhou ao seu redor e viu uma multidão encostada nas paredes do Theatro e do Clube dos diários, todos bocejando sincronicamente.
Quanta gente! Ela era a décima pessoa da fila. O quê? Contou de novo, indagou-se sobre a mudança de posição, tentou espalhar o questionamento entre os mais próximos, ninguém soube informar nada. Começou a duvidar da própria sanidade e resolveu anotar o número “dez” na palma da mão. Por precaução contou mais uma vez: Era a décima sétima pessoa da fila.
Quem sabe fosse o sono, observou com atenção. Reconheceu o primeiro da fila, o morador de rua que contaminou a garrafinha d’água. Revoltou-se calada. Não quis confusão, ficou inerte. Contou novamente: vigésima primeira pessoa. Como pode?
“Acabaram os ingressos”, alguém comentou.
Maria surtou, era a trigésima segunda pessoa e já tinha esgotado tudo? Era impossível, gritou. Contou novamente a quantidade de pessoas: duzentas e noventa pessoas. Guardou todo o ódio pelo tempo perdido na muderna fila do Seis e Meia e escreveu uma nota na sua rede social, sentiu-se recompensada pelo apoio recebido, discursou sobre desrespeito e teve alguns lapsos de cidadania.
Discursou abertamente sobre as condições insalubres oferecidas, retrucou a respeito da modernização do serviço, buzinou nos meios de comunicação sobre os cambistas e falou sobre a desumanidade. Contudo, nenhuma reclamação formal fora registrada nem naquele ano, nem nos anos anteriores, tampouco nos anos posteriores.
Seis e Meia. Os leões vigilantes, acomodados sobre o teto do 4 de Setembro, observavam a movimentação na entrada do teatro e descansavam silenciosamente enquanto o aglomerado de vendedores, cambistas e espectadores brotavam pelas bordas da praça Pedro II. Maria da Silva chegou discretamente, sem adornos, tentando se camuflar entre os anônimos.
A índole inquestionável da dama não permitiu a sua aproximação com os cambistas, entretanto os anos frequentando o local ensinou Maria a arte de conhecer os atalhos. A porta-voz dos clientes do Seis e Meia, sabe-se lá como, sabe-se lá de que forma, sabe-se lá quando, entrou pela majestosa porta construída por Manuel Raimundo da Paz – inaugurada naquele vinte e um de abril de mil oitocentos e noventa e quatro – e sentou-se na janela interna do Theatro 4 de Setembro para assistir ao show.
Por Alisson Carvalho
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