Bandido bom é bandido morto, de Alisson Carvalho

Foto de Victor Martins

A primeira bala percorreu os 102mm do cano metálico da arma, ganhando velocidade graças ao mecanismo de impacto do disparo. A pistola de calibre .40, empunhada pelas mãos do perito, transferiu para aquele jovem ego uma sensação inimaginável. O reflexo de uma mente treinada para atirar se mostrou eficiente, ele era o mais novo instrumento do Estado e estava pronto, apto para matar.

O ritual de iniciação acabara no cartucho caído. O novato que recebera um número qualquer ignorou as aulas do curso de formação dos policiais militares, foi um dos casos que passaram na sorte? Não, mas é bom que se diga que a sua competência foi se enviesando e com o tempo ele aprendeu a ser demasiadamente brasileiro, da forma mais pejorativa que existe. Como diziam meus amigos canadenses: um típico brasileiro larápio.

O número alguma coisa, mais novo membro da equipe, ingressou na sorte. Teve a ousadia de comprar o gabarito da prova com um grupo especializado em fraudar concursos públicos e graças às orações da família conseguiu concluir todas as etapas do concurso. Sua propensão para a fraude fora observada desde a adolescência e encobertada pelo pai que diagnosticou o problema como sendo um mal passageiro, algo típico da idade.

Não passou, agravou-se tanto que a vitória fajuta pareceu uma benesse divina diante de todos os problemas gerados pela arrogância do filho e pela má índole. Não, não mesmo, era mais pela falta de nãos recebido na vida do que propriamente por alguma característica inata ao ser humano, mas, como toda típica família, ninguém admitiria os próprios erros e delegariam a culpa para outrem. Ter um filho concursado no Piauí é uma honraria equiparada à aprovação no vestibular. Os pais estufaram o peito e envaideceram-se com aquele sentimento nunca experimentando em relação à prole.

Enfim, voltando ao ritual de iniciação do policial…

O número qualquer esqueceu o protocolo: questionar e, só depois, atirar. Distraído, apertou o gatilho liberando o martelo da arma que atingiu o pino de disparo, a espoleta. As frações de segundos decisivos roubam toda a magia do disparo. Toda a ciência está no momento em que o pino de disparo toca brutalmente a espoleta. Mais rápido que o próprio piscar dos olhos, o composto contido no invólucro metálico explode e a pólvora contida no cartucho entra em combustão. O impacto gerado pelos gases, liberados com a combustão do propelente, impulsionam o projétil.

Quem era a vítima?

Ninguém perguntou. O número qualquer passou no ritual de iniciação, era de fato um policial. O projétil percorreu alguns metros e o tiro certeiro beijou a boca virgem do jovem, furtaram a possibilidade do estudante sentir pelo menos a dor, de requerer o direito de viver ou de racionalizar o fim iminente. O militar de numeração qualquer mal sabia, mas livrou naquela manhã um vestibulando de sofrer a decepção de não passar no certame, embora pela quantidade de questões respondidas nas últimas setenta e duas horas o prognóstico mais aproximado seria de uma possível aprovação nos primeiros lugares de qualquer curso escolhido, tamanha era a dedicação do “bandido”.

“Bandido abatido”, disse alguém. Perguntou-se se o correto não seria interrogar o suspeito. Riram da pergunta. Verificaram os pertences do jovem, não havia nada. Sem celular? Um policial ganhou um novo celular. Sem carteira? Outro policial ganhou uma rodada de cerveja. “Deixa a identidade ao menos, assim a família não perde tempo procurando”, alguém pensou. Sem identidade. Um corpo rolou barranco abaixo. O motivo? Abatido durante confronto com a polícia. Caso encerrado. Inquérito arquivado.

O policial novato incorporou as idiossincrasias do grupo e rapidamente aprendeu as diretrizes de como funcionava os procedimentos empíricos. Só não podia cruzar com o caminho dos profissionais de reputação ilibada, afinal sempre havia os probos no meio dos ímpios. Naquele dia ele esqueceu que uma pistola descarregada sempre tem a possibilidade de camuflar uma bala ociosa e foi essa a bala que atingiu o seu primeiro “bandido”.

Felizmente o policial de numeração insignificante ingressou para a corporação no momento propício, época que foi instaurada a lei do “descarregue a arma no bandido, de preferência na cabeça”. A lei vigente foi uma das poucas leis cumpridas com eficiência naquele dois mil e dezenove.

Anexo:

Manual de como identificar um bandido

-As características fenotípicas são essenciais para uma boa intervenção. Não há erro, siga os seus instintos construídos: os esteriótipos.

-É negro? As chances de representar perigo para a sociedade são altíssimas, não deixe de averiguar e interrogar o elemento.

-É branco? Cidadão de bem.

-Mora na periferia? Tem a possibilidade de ser um elemento de alta periculosidade.

-Mora na zona nobre? Proteja-o e, se possível, acompanhe-o durante o trajeto, pois é dever do Estado garantir a segurança do cidadão de bem.

-Tem característica ou traje comum ao que se considera pobre? Deve ser interrogado e se for limpinho, dócil e você estiver num dia legal pode liberar o meliante.

-É negro e está cometendo claramente um crime? Atire para abater o elemento.

-É branco e está claramente cometendo um crime? Tente imobilizar o suspeito e interroga-lo, pois pode ser um ato em legitima defesa.

*Aviso: Isso é apenas um conto ficcional e qualquer semelhança com a realidade é uma mera coincidência.

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