Trinta e Dois, de Fontes Ibiapina

Dezembro dia 14. A matutada de Samambaia amanheceu de crista caída. Foi a experiência das pedrinhas de sal que lhes trouxera mensagem fúnebre. Santa Luzia descera do céu com um recado triste. E Santa Luzia jamais mentiu para aquela gente.Onde quer que se encontrasse um cristão, a conversa era uma só. Aquela conversa tão amassada pela língua de todos – que não ia chover. As pedras de sal postas ao sereno durante a noite, amanheceram secas que nem língua de papagaio! Muitos já o sabiam, porque as chuvas dos cajus não vieram. E quando as chuvas dos cajus não assinam o ponto, pode tirar o cabelo da venta – não haverá inverno.

Todo mundo esmorecia. 32 seriam um segundo 1915. Aquele mesmo 15 que arremedou 77. Mas a matutada não perde a esperança de uma hora para outra:

– O desengano das vistas é furarem-se os olhos.

De semblantes amarrotados, fitavam o nascente. Seus olhos lânguidos, como que queriam comer os céus, procuravam um pingo de sinal de chuva. E os ouvidos atentos aguardavam o ronco do trovão.

Nem ensaio! Nem uma esperança! O céu amanhecia limpo que nem o coração de Maria. À tarde, o sol machucava a cabeça lá no cocuruto da Serra da Atalaia e lambuzava o ocaso de vermelho. Era o sangue da guerra do sol. Era o sangue da guerra da seca. Era o sangue da guerra da fome. E o espírito do povo se abismava, numa melancolia tão profunda, que parecia de cada casa haver saído um defunto.

24 de dezembro. Podia ser que no dia seguinte amanhecesse uma barra no nascente. Mas, às seis horas o sol meteu a cara sem nenhuma mancha de nuvem. Sinal de inverno nada! As carnaubeiras penduravam gordos cachos. E a peitica cantava a noite toda. Quando as carnaubeiras parem muito, não há inverno. Enquanto a peitica canta, não chove. Próximo à lagoa, à tarde, as andorinhas faziam remoinhos. Uma andorinha só não faz verão. Mas, uma praga como aquela, era mesmo que se escrever para São Pedro pedindo seca.

Janeiro meteu os peitos com a cara mais limpa do mundo. Mais uma experiência. A experiência dos cinco primeiros dias do ano, que correspondem ao período hibernal. Cada um dirá como há de ser o mês a que corresponde. Mas foi uma experiência a mais que falhou. Nem um sinal de chuva! Nem um sinal de inverno!…

Esperavam que os xique-xiques florassem. E passavam o dia com os olhos espetados nos espinhos de xique-xique. Espreitavam também as galinhas e os porcos.

Quando uma galinha se espoja na areia quente do terreiro, ou um porco escaramuça arrastando uma palha presa aos dentes, a chuva baterá nas telhas antes de raiar o dia. Mas os xique-xiques não floravam. As galinhas não se espojavam. Nem porcos arrastavam palhas.

Começou o flajelo do gado. Em pleno maio, e as reses já entrambicando de magras. Nosso vaqueiro-de-varanda todos os dias ia pegar os que não mais podiam resistir sem ração e trazê-los para o cercado-da-porta. E lá se ia todo mundo pra aquele trabalho aperreado e quase sem futuro. Começamos pelas ramas de juazeiro e feijão-bravo. Todas as tardes, íamos ao mato. Parecia que aquele trabalho não se acabava mais! Eu me recordava das histórias que papai me contava da Seca de Quinze. E tinha a impressão de estar vivendo em Quinze mesmo. Antônio Macuba trepava-se nas árvores e mutilava galhos sem pena e sem dó. Eu com o meu mano mais velho, adiante de mim dois janeiros bem contados, cortávamos as ramas em feixes. A seguir, levávamos os feixes para casa. Era o nosso trabalho. Era a nossa diversão. O gado já estava sabido e vinha nos esperar no terreiro da cozinha.

O juazeiro era pouco. O feijão-bravo era pouco também. Acabou-se juazeiro! Acabou-se feijão-bravo!… Não ficou uma moita verde na mata cinzenta.

Veio a vez do mandacaru. Cortávamos os galhos e, com o auxílio dum espeto grande, queimávamos os espinhos nas labaredas duma coivara.

Pouco a pouco o trabalho multiplicava-se. Cada dia vinha mais duas, três, quatro ou mais reses para o trato. Nossas viagens ficavam mais longas porque as xerófilas mais próximas já estavam todas decepadas! O gado definhava sem limite. Parecia ser coisa botada, ou castigo de Deus. Não tardou que algumas reses começassem a cair. A noite, de quando em vez, a fala alta de Antônio Macuba (cabra que nunca soube o que fosse preguiça na vida) nos acordava. Ele vinha de uma busca no quintal, e já sabia – gado caído. Se não o levantassem, enfraqueceria das mãos e não haveria recurso. E os homens levantavam-se á noite toda, e passavam toda a noite pegando em sedenhos lambuzados.

Luta árdua! Luta tremenda! À noite, eu me queixava com espinhos nos pés. Era preciso madrinha Clara pô-los numa bacia com água morna e sal. Brigava comigo. E afirmava que, no dia seguinte, não mais me deixava ir cortar mandacaru. Mas eu gostava daquele serviço!… Gostava porque gostava mesmo. O castigo de não ir seria pior que o castigo dos espinhos. Eu tinha pena do gado magro como os meninos-grandes tinham pena dos retirantes.

Depois o mandacaru acabou-se. E lá se vem a vez dos xique-xiques. Os xique-xiques eram menores. E os espinhos dos pequenos são menores que os espinhos dos grandes. E p facheiro e o rabo-de-raposa também entraram na dança macabra da seca.

O gado caía cada vez mais. Nem reza de padre velho dava jeito. Setenta e tantas cabeças no trato! De quando em vez, uma dava o couro às varas e a carcaça aos urubus.

Acabou-se o facheiro. Acabou-se o xique-xique. Acabou-se o rabo-de-raposa. E eu me impressionava. Não sabia como havia acabado tanto juazeiro, tanto feijão-bravo, tanto mandacaru, tanto xique-xique, tanto rabo-de-raposa, tanto facheiro!…

A seca saiu dos galhos das matas e entrou nas raízes. Chegou a vez da macambira. Macambira que sustenta gado magro, e gente magra também. Arrancavam-na pelas raízes e levavam-na ao fogo para que as folhas queimassem. Ficavam só as sapatas.

Sempre eu metia a minha colher enferrujada no meio. Quando a turma jogava as enxadas no ombro, eu estava rente. Madrinha Clara me ameaçava:

– Hoje você não vai, seu fogoió intrometido. Não vai porque eu não quero.

E batia o pé para mim. Prometia-me até relho. Mas eu não tinha um pingo de medo. (Quero é cegar se tivesse qualquer sobrosso). Não era que tivesse coragem, que eu até era mofino. Era que eu sabia que Madrinha Clara não tinha natureza de me surrar. Não fora escrava, pois, nascera no ano da Lei do Ventre Livre. Mas vira sua mãe e seus irmãos serem cativos. Mas Madrinha Clara não aprendera a surrar ninguém. (Graças a Deus).

Em casa, quebrávamos as cabeças de macambira em cepos de madeira, até as cápsulas brancas estufarem. E o gado comia tudo na maior gulodice do mundo.

Vai que eu tinha a impressão que aquelas sapatas fossem cabeças de gente com miolos estufando. E só me vinha aos sentidos uma história que certa vez a negra velha Galdinha me contou:

– Era uma vez um fazendeiro bem rico. Rico que a barriga não crescia mais por não ter mesmo para onde. Perverso que metia medo até aos defuntos. Quando tinha raiva dum escravo, mandava que os outros agarrassem e derrubassem e sugigassem o pobre. Querer, eles não queriam. Mas tinham de obedecer às ordens. Do contrário, entraria também na dança. Pegava uma pedra bem grande, do tamanho da barriga dele, e quebrava a cabeça do pobre negro, chegam os miolos estufavam. Mandava cavar um buraco bem grande, do tamanho da barriga dele, jogava o escravo dentro e enterrava o coitado sem uma cruz sequer, sem recomendação, sem reza, sem nada não. Mas os escravos não se acabavam porque a senzala do infeliz era maior que a barriga dele.

Quando foi certo dia, o feitor desse miserável fez uma viagem para bem longe. E uma filha moça do dito feitor ficou em seu lugar. A moça tinha o coração maior que a barriga do fazendeiro, e viu que daquele jeito não podia ser. Ajuntou um bocado de homens sabidos, de vergonha na cara (e de coragem também) e tomaram todos os escravos do fazendeiro perverso da barriga grande. Os cativos ficaram livres e o fazendeiro perverso ficou pobre e, por sinal, sem barriga. Os filhos dos escravos ainda hoje são pobres, porque não puderam tomar pé. Mas como Deus castiga aos culpados, os filhos do fazendeiro perverso da barriga grande vivem aí na maior miséria do mundo. São brancos, mas são pobres tal qual os filhos dos que foram escravos de seu pai.

Quase todas as noites uma família de retirantes se aboletava no alpendre grande de nossa fazenda. Eram homens magros, mulheres em andrajos e magras também; crianças também magras, e barrigudas – que se destinavam ao Maranhão.

Um caboclo velho chegou com a raça toda – a mulher e seis filhos.

– Dá licença, capitão!

– Pois não! À vontade.

A voz era humilde porque a terra não era a sua, e o seu caminho era o caminho da seca – o caminho da fome. O papai era capitão porque era o dono da casa. Arriou a bagagem, deu um suspiro. Um suspiro tão grande, que talvez tinha ido ao seu “Ceará de Açúcar”.

– Ah! Seu moço… Nem em sonho queira saber o que temos sofrido nesta viagem! Se em toda casa nos recebessem assim, apesar de tudo, seria um céu-de-rosas. Mas, pode acreditar como nesta luz que nos ilumina, como há muita gente que só falta é cuspir em nossas caras.

E de onde vocês vêm? Que mal pergunto!

– Pergunta bem. De Lavras de Mangabeira. Lá este ano não pingou. Foi uma seca mais danada do mundo. Uma coisa é ver, outra é dizer; está se acabando tudo. E não é de outra coisa não. É da pura fome. Morre gado, morre gente. Morre tudo enfim. De janeiro a 19 de março (quando saímos de lá), não caiu um pingo d’água em cima do chão. Nunca vi seca tão grande!!!

– Aqui também não houve inverno.

– Sim, foi seco. Estou vendo. Mas, lá pra nós, foi dez vezes pior do que isto. Basta saber que aqui houve inverno no ano passado que Deus deu. E lá foi bastante fracateado. Milho só deu tamboeira. O feijão agüentou mal a primeira carga. Por aí o senhor tire o resto e veja como a coisa lá está preta.

– E para onde vão?

– Para o Maranhão. Para a terra onde Deus dá chuva para os pobres. Mas já estou quase vendo que lá não boto. Eu saí com muita fé. Vinha até com esperança de um dia voltar com uma pontinha de recurso. Mas já perdi a esperança. Já perdi até a fé. Sei que nem pobre como saí voltarei. Pra falar a verdade, até a esperança de lá chegar já perdi. Estou fazendo promessas para que chegue com vida por lá e escape a família no coco babaçu. Aquele menino ali está batendo febre desde antes de ontem. Não sei o que é. Mas ele vai morrer.

Meia-noite, mais ou menos, ouvimos um choro cansado. Um choro enterrado. Um choro no centro da fome. O papai abriu a porta e saiu. Eu o acompanhei, sempre fiel ao meu princípio de curiosidade.

– Menino intrometido! Volta pra trás!

O velho agüentava um tição-de-fogo na mão do menino que, com os olhos fixos no teto do alpendre de nossa casa, morria no apogeu da miséria. Estirada ao chão, uma mulher magra e suja se lamentava da sorte. Cinco garotos, magrinhos de fazer pena e dó!… e de cujos olhos desciam fios de lágrimas, soluçavam em ritmo.

Abriu a boca três vezes, lentamente e espirou.

O velho filosofou:

– Que coisa triste… Seu moço. Dá até pra não se acreditar nas coisas do outro mundo. Será possível que Deus exista?Achava que sim. Agora, acho que não. Deus, sendo Deus como o povo quer que Ele seja, não ia deixar que uma criança inocente morresse de fome em tamanha miséria. De duas uma: ou Deus não existe, ou só existe para os ricos. E se Ele só existe para os ricos, pra mim não existe, porque eu sou pobre. Nasci na pobreza, e nunca soube o que fosse ser rico na vida.

A mamãe jogou o seu infalível catolicismo na ponta da língua:

– Tenha paciência, moço. Todo que Deus faz é bem feito. Sei que seu filho morreu, e que o senhor muito sente em o haver perdido. Mas, no mundo de tudo se vê. E mesmo ele foi em bom tempo. Era batizado. Já era cristão. Há esta hora, está com os outros anjos na Corte de Deus.

– Mas eu não me conformo. Não há quem me faça conformar, e ninguém se conformaria estando em meu lugar. Antes tivesse sido eu. Iria satisfeito.

– Nada disso! Sei o senhor morresse hoje, tanto ele como os outros e sua mulher se acabariam de fome amanhã ou depois. Sei que nada tem para lhes dar. Mas não queira saber, nem em sonho, o que sofre uma pobre viúva carregada de filhos, especialmente numa época como esta.

-Em bem sei, siá dona, que tudo que a senhora está dizendo é uma pura verdade. Mas o que não posso é ficar calado com uma coisa desta.

Virou-se para o Papai e pediu uma esmola de sete palmos de terra. E eu fiquei assustado com aquela história. Pensei o que pudesse ser uma esmola de sete palmos de terra não compreendi. Depois atribui que ele quisesse ser nosso morador. Iria ter mais cinco meninos para o meu quadro de futebol. Mas achei logo que sete palmos de terá não davam para se fazer uma casa. Só se fosse uma casinha mais pequena que a de madrinha Clara. Fui para o oitão e medi sete palmos. Não. Não podia ser. Mas, que o meu palmo era pequeno, pensei. Os pequenos não podem julgar os grandes por si, porque os grandes são diferentes dos pequenos em todos os pontos de vista. O velho seria nosso agregado, e mais cinco jogadores entrariam para o meu time.

Só depois que cavaram a sepultura, lá nas “Covinhas dos Anjos”, foi que eu compreendi o que era a esmola de sete palmos de terra.

A tipóia, atada numa estaca, tentava balançar,mas não podia, de tão esticada que ia. Ninguém gritou irmão das almas! Não sei se porque o corpo era maneiro, ou se porque sabiam que em tempo de seca não se encontra um irmão das almas para remédio.

Arriaram a bagagem. Desataram as cordas, sem nenhum protocolo, jogaram os punhos da rede na cara do pequeno defunto. Botaram-no na sepultura. Uma mulher magra gritava dentro duma carga de nervos como se quisesse proibir a cena. Mas ninguém deu assunto às loucuras da mulher. Meteram terra na cara do menino, até que ficou rente – uma sepultura do mesmo jeito das outras.

Lembrei-me duma história que a velha Madrinha Clara, minha ama-preta, contava. Lembrei-me e tive a impressão de que depois ia nascer capim naquela sepultura, e aquele menino ia cantar:

– Negro do meu pai,

Não corte meus cabelos,

Que a madrasta me enterrou

Pelos frutos da figueira

Que o passarinho comeu.

Xô passarinho!…

A Mamãe acendeu duas velas de cera de carnaúba nas extremidades do túmulo.

O retirante pendurou os olhos compridos na estrada e convidou a velha para de irem. A esta altura, quando eu já perdia de todo a esperança dos cinco jogadores para o meu time, a mulher abraçou-me, beijando-me a cabeça, numa voz claudicante:

-Deus te proteja, meu santinho… São Francisco do Canindé há de ajudar aos teus pais, para que eles sempre possam servir aos miseráveis que passam por aqui.

Eu sentia vontade de chorar. Não sabia por que sentia vontade de chorar, e não sabia também por que sentia e não chorava. Mas tinha certeza que o menino ia cantar:

– Negro do meu pai,

não corte meus cabelos,

que a madrasta me enterrou…

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