Caro poeta,
Lembro-me claramente das tuas críticas, não tão claro assim, pois à medida que o tempo passa sinto-me sem o controle da nossa memória. Engraçado, não? As lembranças se mesclando aos sonhos, quem sabe o medo seja o que me faça escrever para não perder os detalhes dos fatos.
Sempre me senti um grande idiota quando compartilhávamos ideias. Você, como todo grande intelectual, sempre guardando os grandes segredos, silencioso, tácito. E eu, como todo grande idiota, tentando refletir sobre as grandes questões do universo, tagarela. Eu me sentia como um Dottore da commedia dell’arte que se vê diante do abismo entre o verdadeiro conhecimento (o seu) e o conhecimento fajuto ameaçado (o meu). Dava medo, mas me instigava demasiadamente.
Nunca fui bom em nada, mas, sabe-se lá por qual loucura, as pessoas me superestimavam. Nunca entendi isso ao certo, afinal me acho o mais burro dos homens e isso me causa uma tremenda angustia. Preferiria ter o dom da palavra, mas nessa de preferir acabo pensando que teria que abrir mão de outro dom, nesse caso que dom eu teria? Respondo: nenhum. Logo, não haveria escambo.
Sem dons, sem habilidades, cada vez mais desconectado do universo, sinto que as nossas conversas bestas eram as únicas conversas que me agradavam e elevavam-me. Eu aprendi a falar por meio da tua voz e foi para não ficar no pretérito que quis evoluir. Hoje penso em cada porcaria que vomito na ânsia de tentar me comunicar e um dia conseguir o mérito de dissertar assuntos mais abrangentes e deveras lúcidos como os que presenciei nos teus densos insights .
Eu nunca consegui te superar – nem na prosa, menos ainda na declamação e tampouco na poesia – e nem queria superar, era mais uma forma de experimentar o teu mundo, experimentar. Você, que sempre foi um grande professor sem ser docente, tornou-se uma vaga lembrança e eu respeito o passado.
Talvez o maior presente que recebi seja aquela lembrança do lago enquanto divagávamos, era a nossa terapia.
Tudo bem, percebo que eu nasci para a solidão, talvez seja esse o grande motivo do silêncio. Não busco mais nada. Percebi, por outras impressões, que sou intragável. Devo ser insuportável, eu compreendo. Sou um amontoado de erros não solucionáveis, irrecuperáveis, mas agradeço o teu esforço em tentar me melhorar, graças a isso eu abandonei alguns dos meus vícios na fala, da fala.
Caro poeta, foi desafiador conviver com uma das maiores mentes que eu já conheci na vida. Sinto saudades de conversar assuntos outros, assuntos humanos, assuntos normais, meu prazer pelas conversas perderam o tempero.
Ganho mais luz no sorriso toda vez que encontro pessoas de verdade. Lembro-me com carinho de quando a arte era nosso brinquedo.
Já não acho mais humanos, nem o reduto onde se escondem. Aqueles seres cheios da substância que me desperta a fala e me faz discorrer sobre qualquer assunto, sobre um assunto qualquer, sem pé. Aqueles seres humanos.
Hoje eu te entendo. Realmente está tudo muito mecânico, mesmo entre aqueles que cultuam a simplicidade e falam da organicidade, estes discursam vida, mas estão dormentes, enrijecidos.
Você e suas críticas certeiras! Eu e os meus erros vulgares!
Estou deixando de enxergar titãs e percebendo a trama -previamente – alertada. Quem diria, éramos meras ferramentas do acaso. Talvez eu tenha me tornado uma vela cuja chama modela a estrutura do meu ser. E eu nem deveria citar Schopenhauer, sei que você foge dos grandes mergulhos filosóficos, mas já não sou tão submisso às chamas como era outrora. Por isso, nem para te dar conforto eu deixarei de divagar, como eu sempre fazia, antes de te conhecer.
Abraços, para o único abraço que consegue quebrar as minhas travas e barreiras. Para o poeta.
At.te: Senhor S.