_Bicha!
Fiquei estupefato, abobalhado, sem reação. Ali, estático, sobre as vigas de madeiras do palco do teatro, pensei em desistir. Era a segunda apresentação da peça, o frio invadira o recinto e contaminara milimetricamente todo o espaço. Nunca havia sentido aquela emoção, era medo e pavor misturado com a incredulidade diante do absurdo. As vaias silenciaram com a primeira pancada, só pude olhar para o rosto do policial que avançava ferozmente antes que eu apagasse completamente.
Deixe-me esmiuçar o fato.
A peça sem nome, sem roteiro, sem objetivos, sem atores, sem cenário, sem sonoplastia, sem iluminação incomodou alguém. Uma dessas almas abastecidas de bons contatos e influências resolveu encontrar um motivo para se sentir ferida pelo contexto abordado na obra. E, após vestir a carapaça, decidiu nos delatar.
Éramos ‘todos’ moças de família, digo, homens de respeito, perdão, quis dizer que éramos pessoas educadas, retidas, representantes da família tradicional brasileira, despidos de preconceitos, pessoas nobres, todos muito contidos, respeitadores da ordem e da moral cristã. Vivíamos como se vive até hoje, mas sem questionar as tradições, acreditávamos no progresso e por isso mesmo consumimos cada pedaço do verde que servira de alcunha para a nossa terra. Preferimos cuspir para a periferia toda a mácula desviante que “enfeiava” a cidade. Foi com fogo, foi com reestruturação e foi usando o discurso protecionista, foi a ideia de modernidade que justificou os nossos preceitos.
Acontece que um dia, passando em frente ao teatro, escutamos um som. Era uma batucada rítmica que me fez entrar no lugar e presenciar um bando de corpos nus deitados no chão. Fiquei boquiaberto e imóvel, meus músculos não aguentaram as amarras morais. Sem perceber fui sendo inebriado pelo ritmo e mergulhei no mar preto de gente, virei um deles. Perdi-me na multidão. Conheci, por fim e tardiamente, o teatro, as artes.
_Puta!
Veio a primeira manifestação contra a nossa obra considerada imoral. Em seguida alguns policiais invadiram o teatro, poderia ser qualquer teatro, mas era o nosso. A personagem, Cordélia, não era ipso facto uma puta, era mais uma mulher forte e disposta a tudo, inclusive subverter a ordem preestabelecida pela sociedade patriarcal. Após o comentário, depois de muito debate, eles avançaram contra o grupo, os xingamentos sobrepuseram o barulho dos golpes. Quem assistiu ao show de violência e quem assistiu a violência, cúmplice e algoz, todos silenciaram satisfeitos. A protagonista desapareceu, causando estranhamento em todos nós, afinal os protagonistas geralmente brilham, ela brilhou e em seguida foi consumida pelas trevas do embrutecimento militar. Pelo menos é o que dizem, eu não digo nada, só reproduzo o que me falam.
Poderia ser qualquer grupo, poderia ser o Teatro Arena, Grupo Opinião, Teatro Oficina, mas não, foi justamente o nosso. Entraram com alguns cartazes na mão, todos movidos pelo mesmo discurso de ódio. Não tinha AI para justificar a invasão, afinal a internet tem dessas coisas, entra-se pelas portas dos fundos com a boca espumando de ira e, camuflados pelo anonimato, os sujeitos atacam a obra, muitas vezes nem passaram pelo título da notícia, vão com a multidão, enganados pelo reducionismo dos discursos fascistas, pela revolta de uma massa que nem chegou ao ponto final do conto.
Enfim, destruíram cenário, rasgaram figurinos, atentaram contra a moral dos intérpretes e dos performers. O ano poderia ser 1968, mas não temos como precisar, afinal aqui a falta de memória transforma a história em algo cíclico.
Falimos diversas vezes, fechamos as casas de apresentações, os centros culturais e, na contramão desse cenário, a milésima farmácia inaugurou ali, na esquina. Percebi declamando a poesia da personagem sem nome que não precisamos de memórias. E, mesmo contra toda lufada retrógrada que veio nos assombrar, ocupamos a Praça Pedro II, pois não vamos deixar que as catedrais do consumo, os shoppings centers, sejam a nossa única opção de lazer já que aquilo ali não é lazer, gritei.
E, embora abandonem os parques, as praças, os teatros, centros culturais, as quase-galerias, estaremos ocupando cada brecha dessa cidade que afunda na lama do progresso. Nossa peça falava do abandono, do centro histórico desaparecendo num final de semana qualquer. Nossa peça alertava sobre as muitas igrejas, os muitos hospitais e os poucos cemitérios. A sociedade anômica joga pedra na arte, invade os espaços, defende o fim da liberdade de expressão com a própria liberdade de expressão.
Escuto gotas humanas caindo sobre o meu teto e ainda consigo chorar, pois não estou dopado. Não estou dopado, ouviram? Mais um ipê que flora, eles são multicoloridos, mas predominam no setembro amarelo. Tem sempre uma flor que ruiu no nosso verão, sempre, sempre. E nem todo templo, as tais casas de exploração das almas, ou as drogarias que tentam dopar as dores conseguirão me fazer esquecer das pétalas amarelas que pereceram numa cidade sem memórias.
_Drogado!
Não apareci na tevê, mas meu vídeo circulou além das fronteiras conhecidas, no oceano ad infinitum do mundo abstrato, a internet. A indústria fonográfica transformou toda a minha arte numa engrenagem engessada, em poucos segundos eu estava na boca da massa. Fui cantado por multidões, mas o que tenho para dizer é que nem era uma música, foi somente uma frase aleatória que reverberou.
Empurraram-me para o proscênio, as luzes me cegaram tanto que eu mal pude sentir as linhas manipulando os meus movimentos, eu era um fantoche nas mãos dos empresários e produtores. Tentei cortar os vínculos, saí em capa de jornal, revistas, enfim, na mídia. Transformaram-me no ícone dos universitários e posteriormente um digital influencer. Foram algumas frações de segundos, todo o capital investido ruiu junto com a confiança em mim depositada. Eu fui uma dessas moedas especulativas que perdem o valor. No segundo seguinte já nem se lembravam mais o meu nome, a batida rítmica mudou, a mídia só falava no novo astro. Foi assim que o showbiz me diluiu ao nada. De subversivo virei mera máquina do mercado. Fui esmagado por outras forças, não meramente pelos cassetetes, tampouco pela tortura, em vez dos aplausos fui tolhido até a alma pela mídia.
De quem eram os punhos agressores? Não era especificamente de um único indivíduo, senti uma baforada conservadora ressecando a minha pele. Acho que foi até aquele vídeo performático que rompeu o silêncio do público, causando pela primeira vez uma discussão, reflexão, questionamentos, mas partiu justamente de espectadores que nem ao menos visitaram o espaço onde eu expunha a minha obra. Os meus críticos eram seres onipresentes, assistiram à apresentação através das telas dos seus computadores e decidiram que a minha obra não era condizente com os valores morais da sociedade de bem.
Não era 1968. Repito, não era. E aquele quase sessenta e oito pode até confundir quem viveu os horrores das restrições da liberdade, mas estamos num ano qualquer e nem nos interessa definir temporalmente onde estamos, este é um texto datado por natureza. O que importa falarmos em data se a memória é falha? E eu admito que tremi vendo os policiais invadindo os espaços artísticos. E não, não foi para defender a arte, não foi para defender nada. Foi e é apenas o indício do tolhimento começando a nos amputar, seja na Casa do Hip Hop, seja nos Arcos da Lapa, seja até por um deus que não pode ser tal qual é o povo: igual, individual e único.
De bicha, puta e drogado passei a ser santo. De bicha, puta e drogado passei a ser canto. De bicha, puta e drogado passei a ser tantos. De bicha, puta e drogado passei a ser prantos. De bicha, puta e drogado passei a ser bandos. De bicha, puta e drogado passei a ter um manto. Fui bicha, puta e drogado só porque resisti, porque não quis ser limitado, por questionar o corpo, por questionar a ordem e não aceitar um lugar imposto, só por querer o oposto, só por pensar.
_A Bicha, puta e drogado não vão calar!
Me capturou como um texto manifesto. Se por um lado o campo da produção artística e da arte em si têm sofrido uma cruzada moral e uma supressão conservadora, a resistência é no sentido de resignificar todas as tentativas de apagamento que essas pessoas sofrem, seja individualmente, seja nas instituições, seja nos símbolos. Para mim, de repente, o local (Teresina), vira o panorama nacional e vice e versa. Enfim, acho que bota a gente pra pensar sobre as estruturas de poder e como não conseguiremos cuidar de nós mesmos sem as narrativas proporcionadas pela cultura, que ampliam nossa subjetividade.
Eu li o conto. Acho que nem é um conto, pra mim, é mais um manifesto sobre essa hipocrisia que vivemos hoje e a desvalorização da arte. Os diversos “críticos” que surgem diariamente. O bonito é sair bostejando pela boca sem se dar ao trabalho de conhecer aquilo que estamos “criticando”. É um texto atual e atemporal. O nu em uma sala de museu incomoda, mas o corpo sarado do ator ou atriz na novela é bonito, chama atenção e é necessário. Como tu mesmo fala, o ano pode ser qualquer um. Essa industrialização de tudo me incomoda. Essa falta de olhar realmente crítico para as manifestações culturais também me assusta. As pessoas deveriam parar de querer ser donas da verdade. Se determinada peça, ou o que quer que seja, não te agradou é simples, é só não vê-la novamente. Outra coisa que veio a mim enquanto eu lia é essa nossa mania de supervalorizar aquilo que vem de fora e deixar de lado o que nós temos aqui, do nosso lado. O teu texto é um grito de todos os artistas que diariamente estão tentando levar arte para todos!
O texto começa dando ao leitor a falsa percepção de uma história contínua com personagens bem construídos bem conceituados bem delimitados(que poderiam inclusive serem tipos),a narrativa é fragmentada e utiliza -se dos poucos personagens para materializar o intento crítico do autor, o macete machadiano de sair e entrar da história(ou estória)aparece mais tímido dessa vez e isso contribui para a qualidade da prosa(ou prosa, conversa com o leitor mais notória no verso: “deixe-me esmiuçar o fato”. Achei de bom gosto o recurso de fazer referências históricas ao AI(ato institucional)e ao poder da internet, bem como ao teatro oficina, essa tua sacada conduz o leitor a perceber épocas tão distantes como similares no que tange aos costumes e ideologias. E aí começa a alfinetada-mor do texto onde o “esquecimento” do narrador personagem faz alusão a pátria amada salve salve, onde um museu de valor inestimável arde em chamas e um dos presidenciáveis mais notórios fala em reduzir o ministério da cultura a uma pasta da educação. “Nossa peça alertava sobre as muitas igrejas, os muitos hospitais e os poucos cemitérios”. Não consegui pescar a intenção dessa frase no texto e eu sei que tem mais coisa por trás dela, ela não é uma mera construção para encher linguiça no texto. O parágrafo que precede a exclamação drogado, tem uma pegada abstrata e parece ter sido empregada por alguém que usou algum tipo de droga, o exemplo clássico do camarada que mesmo trôpego e cambaleante que passou o dia enchendo a cara e jura que não está bêbado. Em seguida o que se lê, são críticas sutis a produtos midiáticos de rápido descarte, referência ao escândalo do MAM, críticas necessárias porém previsíveis nas tuas construções textuais, que só não perdem a qualidade graças ao sarcasmo e a sutileza, o Grand finale traz um parágrafo que é o melhor já construído em todos esses meses de contos a gora em 2018,é um grito de socorro, um grito de desespero de alguém sufocando, um grito que clama por liberdade.
Essa história me deixou emocionada. Um texto muito importante! Com tanto discurso de ódio prevalecendo, com tanta gente reforçando estereótipos sobre causas que desconhecem, se limitando ao preconceito! Queria que essa reflexão passasse na mente de todos.
“Não basta fazer arte, ela tem que incomodar.” Tribo das Artes