Eis que o palco se torna a plateia ou quem sabe a plateia se torna o palco. E, após as sirenes que anunciam o início do espetáculo, o grupo de supetão rompe o silêncio cantando e surpreendendo a todos com o belo trabalho vocal fruto da parceria com a preparadora Pamela Cristiana. Logo a cena é desenhada no palco, tudo sob a direção cuidadosa e detalhista de Adriano Abreu que conseguiu colocar na cena mais do que um olhar, ele colocou o fruto de um trabalho responsável e de muita dedicação.
Os atores embebecidos pela potência cênica que recheia desde um solfejar ao mais longo texto, conseguem transitar pelo palco sem perder o sentido estético da cena, sempre preenchendo e costurando os eventos de forma criativa, despertando a curiosidade infante no público de todas as faixas etárias.
E não tem jeito, é encanto mesmo. Só pode essa a palavra certa para o impacto de ver no palco projeto bem executado dos figurinos e da maquiagem assinados pela atriz Silmara Silva. Esse universo montado transformou a caixa cênica numa espiral lúdica de contação de histórias.
Não se trata somente de investimento na cenografia, marcada pela plasticidade que permitia aos atores manipular parte do cenário conforme a exigência das marcações. O grande segredo da manipulação dos elementos de cena está na riqueza dos detalhes e na forma como os atores se mostram disponíveis no palco.
Como se não bastasse o bombardeio de cores e representação das personagens, nossa audição não escapa aos estímulos dos acordes refinados de Elinaldo Nascimento encabeçando a direção musical e acompanhado pelo grupo na parceria que compõe a sonoplastia da peça. O diálogo entre a sonoplastia e a cena permitia dar sonoridade às ações “menos relevantes”, engrandecendo as pequenas interações, assim como resgatando, sempre que possível, o interesse pela cena. Como se fosse possível perder tal interesse.
E, como numa montanha-russa de emoções, acompanhamos a história de uma família, um pai e um filho, um sentimento que é universal e atravessa não só todas as pessoas em diferentes culturas, como todas as épocas. A adaptação da história de Carllo Calodi é materializada no palco seguindo a ordem lógica da obra e passando pelas diversas estações que marcam os eventos da história de Pinóquio. Uma passagem que é feita de forma sutil, mas sempre deixando a margem para a interpretação e nunca entregando todas as fichas.
A performance dos atores no palco demonstra o investimento tanto no grupo, quando nas habilidades individuais de cada interprete. E toda essa habilidade é modelada para atrair os olhares, num minucioso lapidar das ações das personagens. São os detalhes que fazem o Coletivo Piauhy Estúdio das Artes dar um verdadeiro show musical/teatral/corporal na cena, com esse estranho hábito de surpreender o teatro piauiense com propostas sempre desafiadoras.
A palavra criatividade ganha todo o sentido na mão desses artistas.
“Pinóquio e Gepeto ao sabor do vento” é um tratado que diz respeito ao relacionamento entre pais e filhos, tocando em questões sempre atuais como a educação e a gestão do processo de socialização desses pequenos atores sociais que são as crianças. A peça não subestima a criança, pelo contrário, nos mostra como o processo de socialização é importante e poderão determinar o futuro de alguém, mas também não é reducionista, tampouco fatalista, pois abre margem para a possibilidade da transformação. Não é porque a pessoa errou, saiu dos trilhos, que ela deve ser estigmatizada ou tatuada com aquelas escolhas ruins. Há sempre a possibilidade da mudança.
E com tantas informações circulando e a infância atravessada pela violência seria ingenuidade pensar que a criança não atribui um significado a todo esse bombardeio de informações, por isso mesmo o espetáculo ganha uma dimensão bem maior quando apresenta os possíveis perigos do mundo.
O grupo dá um salto qualitativo ao entender que as crianças não são tábua rasas, seres limitados, mas sujeitos que também interpretam o mundo e dão significados ao que existe. Por isso a peça trabalha a infância no plural, afinal cada cultura tem uma noção diferente a respeito da infância. Dessa forma, ao se inserirem nesse universo, do teatro para crianças, o Coletivo engrandece a cena teatral e questiona, com o próprio trabalho, o modo como tratamos as nossas relações interpessoais. Ao mesmo tempo dão o devido valor ao público e ao ultrapassarem o tempo habitual dos espetáculos teatrais locais eles acabam desafiando o poder de envolvimento do público com a obra.
Então, diante de tudo isso, não é difícil de entender os olhares encantados e sorridentes ante a representação dos atores. No palco os atores mostram a versatilidade por meio da mudança de corpo, voz e máscara facial na mudança das personagens. Carlos Aguiar demonstra a potência do seu trabalho representando diversos personagens, mostrando que um boa construção está não somente no personagem principal (Gepeto) como, e principalmente, nos personagens secundários; Erica Anunciação vai crescendo ao longo da apresentação dando voz à Fada Azul, o grilo falante e Rosaura; Állex Cruz surpreende com o seu trabalho corporal tanto de variações sutis ao quase caricato e dando vida ao comprador de bonecos, Arlequim, Gato, entre outros; Deusa Sofia com uma construção mais sutil, demonstra a entrega à apresentação. Waldfran Soares solta a voz sob a pele das várias personagens que representa, como o Mestre Cereja e o Come Fogo. E Silmara Silva dá vida ao boneco Pinóquio, colocando na cena camadas de máscaras que dão ao menino vida. A atriz veste a capa chamada Pinóquio e dentro dela representa as diversas representações feitas pelo menino ao longo das estações que compõem o espetáculo, cantando, inclusive, como Pinóquio.
Olhares e vozes de todas as idades, inclusive dos pais, que acompanham as canções, as ações das personagens e que retribuem o show no palco com uma grande salva de palmas que se estendem para além do tempo ordinário.