Semente, de Alisson Carvalho

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Foto: Vinicius Figueiroa

Há quem diga que tenho pinta de pesquisador. Refleti algum tempo a respeito do germe da ideia, não tirei nem pouco proveito do insight e de tanto perder segundos com o empreendimento decidi que abandonaria as poucas vírgulas que ainda me restavam. Pensei em construir-me sobre a base da ignorância, pois somente ali eu teria alguma chance de sucesso.

Sim, isso mesmo, nivelar-me-ia por baixo, lá na lama mesmo, misturando-me ao substrato de tudo que haveria de ruim, do que há de menor ou menos que o pior dos medíocres.

Seriam pensamentos descartáveis, abandonados pela rotina maçante ou o meu rubicão cerebral? Mais tarde, talvez, encontrar-me-ia na situação análoga dos meus homólogos, dos outros seres humanoides habitantes desse nicho, do estranho paraíso chamado liberdade.

Contudo, sem o passar do tempo permaneço no presente, ainda restrito na forma não evoluída do que um dia eu considerarei saudade. E será um grande problema, afinal quando estamos imersos no tal evento problemático, cujas lembranças, no futuro, amenizarão o pesar da dor, mal temos tempo para racionalizar o tal fato.

Essas divagações não te importam em nada, suponho. Você, assim como os demais presentes, está ávido pelo cessar das minhas palavras, desejando profundamente uma finalização do discurso que só acontece dentro da caixa neural que recheia a minha pausa com essas divagações tolas, fúteis, carentes de solidez.

E foi de tanto observar que percebi o inevitável, o devir dos meus dias, o anúncio do fim. Constatei, graças ao estranho hábito de observar o mundo, que os ceifadores de almas circulavam como formigas pelas vielas citadinas. Tremi, admito. Foi assustador perceber a animalidade devorando o pouco de cerebelo que adquirimos. Adquirimos? Obviamente não, nascemos com o órgão melhor adaptado, mas pouco importa já que os ceifeiros da morte não precisam refletir, apenas executar as sentenças dadas pelas suas razões quase inatas, inseridas nas suas mentes durante o processo de crescimento.

Embebecidos com as tais ideias, informações fragmentadas propositalmente, os ceifeiros alimentam-se da ignorância. Arrastam tudo por onde passam, mas sem querer dar um tom poético direi que são personagens secundários nessa história. Direi isso porque posso dizer, até o momento posso falar, ou pensar que falo, mas chegará o dia que minhas míseras manifestações de indignação serão suprimidas.

Minha curiosidade desmedida levou-me ao tal ponto crítico, foi só por meio do sentimento de não contentamento com os dados que me foram apresentados que eu pude sair da minha zona de conforto e percorrer o caminho desconhecido do perigo.

Não é fácil deixar o conforto da gravidade, mas eu o fiz com muito orgulho. Bem, não era exatamente orgulho, era um misterioso medo misturado ao sentimento de empolgação nunca sentido, que por falta de experiência e conceitos eu nomenclaturei de adrenalina. Como já expressei, erguer-se não é tarefa fácil, tampouco um grande feito, talvez não para quem já domina a tal arte de andar. Já que não sou bípede, erguer-me foi uma revolução e creio que inspirei os outros quadrúpedes, por isso acho que fui o vírus daquele pequeno rancho. Abri os meus curtos braços, joguei todo o peso do corpo para as duas pernas e dei os meus mais longos três passos antes de cair.

Tinha algum elemento novo, único na constituição dos meus ossos que me permitiu dar um salto qualitativo, mudando a minha condição de ser rastejante para a de ser superior, humano, e eu me aproveitei disso.

O especismo, antes nocivo à minha condição de animal qualquer, tornar-me-ia especial com a nova faculdade, a de poder andar. Sentir-me-ia um igual, deixaria o passado e alcançaria o meu grande objetivo, o que me fez refletir sobre o meu lugar no mundo. Sim, eu tinha sonhos, mesmo sendo medíocre, tinha lá os meus anseios e só pausei os meus afazeres ordinários porque vi, certo dia, um objetivo, na verdade era um objeto, algo mais atrativo que os que já compunham a decoração daquele espaço chamado creche.

Uma pequena semente rubra, cujo vermelho inebriante tinha o efeito magnético para os meus olhos, caiu do bico de um ser alado que visitava constantemente a janela aberta do cômodo. O estranho artefato tombou em cima da cômoda e se tivesse permanecido lá, talvez o andar dos acontecimentos tivesse outro desfecho, mas a semente caiu no chão e saltitou com o impacto da queda até assentar-se sob uma antiga mesa de centro.

Peguei impulso, dei meus três passos recém aprendidos para acelerar o meu deslocamento. O pequeno ponto vermelho era o meu mais novo sonho, todos os meus anseios pelo extraordinário condensados num só lugar, comprimidos na pequena semente que me era um mistério. Era o resumo da minha própria condição, o meu grito preso sob a casca ditatorial de celulose, tudo estaria resumido na semente. Naquela prisão, com os ceifeiros da morte rondando os corredores da creche, ter uma sementinha era mais que subversivo, era insurgir contra todo o sistema.

Cogitei a possibilidade de abandonar o corpo raquítico limitante infantil e me tornar um hiperbóreo, tal qual os ceifeiros déspotas. O quão ingênuo fui, não precisava me igualar para alcançar o meu objetivo, tropecei e a queda me lançou para perto da semente vermelha. Deixei de ser vontade, germinei ao tocar na pequena semente e descobri o poder dos ceifeiros das almas, descobri o pronome possessivo.

Alisson Carvalho
Livro:
Rascunhos Líquidos (2018)
Site do fotógrafo Vinicius Figueiroa 

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