Vocês já viram um cadáver? Melhor: um cadáver atropelado?
Foi assim: os meninos vieram aqui no portão, “alguém morreu nos trilhos”. Como? O maquinista avisou, tocou a sirene – aquele som que desde então me figura como um aviso das trevas, uma trombeta soprano de Dante. Mas parece que nada foi ouvido.
Tinha 13, acho, e me lembro de nunca antes ter visto um cadáver assim no seu momento póstumo e alquebrado o que me fez esquecer que estava pronto para a escola, comida nas mãos, e Maria – a mulher que cuidava da casa e de nós há época e de quem tenho muita saudade – olhou-me: não vá, não vá, sem dizer palavras. Censurou os outros, jogou-lhes pragas, e eu larguei imediatamente o almoço.
No sol, cruzaríamos poucas ruas até a queda do muro. De longe, aqui da nossa calçada, aquele muro era a divisória entre o chão e o firmamento. Daquele lado havia um declive até o centro por onde passam as máquinas sobre trilhos, e quando sentávamos nos fins daquelas tardes secas nada nos separava do céu. Mas agora mudou: casas de cor cinza e as pessoas nas ruas sabendo do morto, e da parede de tijolos – da nossa divisória com o mundo de cá – fomos direto ao fundo, ultrapassando sete degraus, cruzando mato rasteiro que se enlaçava aos pés e quebramos uma barreira de pessoas e vozes, até o limite das pedras e das barras laminadas do trilho.
Não vimos o corpo e sabe-se que tudo foi por volta das dez. Polícia e formigas fazendo trabalho. No chão, só os braços e as pernas à mostra – partes que fugiam do papelão – e já se sabia quem era aquele ali. Sinto que esse azul claro se anuviou, pesava-me o peito, como a força de uma pancada, um impulso como numa queda de um abismo; o abismo daquela parede vista do lado de cá. Então foi isso, uma queda. Não. Não foi.
O homem viera placidamente pela rua. Descera a escada de pedra, a cem metros da estação, e, na travessia, foi agarrado pela simplicidade daquele momento em que a vida é soprada para fora dos ouvidos, numa brisa fria e silenciosa, tão fina e suave que faz agitar pequenos pelos do braço e os cabelos atrás das orelhas.
Mas, se é assim, não sei, só imagino, pois a volta do carro do trem, que seguia seu curso naturalmente, fez tremer o chão. Vejo pedras se agitarem, numa tentativa frustrada de um abraço louco; os montes de areia desabam de pequenos morros e sentimos o cheiro forte de combustível, como a escorrer do canto das bocas. O som estridente e todos se assustam com aquela proximidade, fugindo do momento presente, deixando o cadáver sozinho por uns minutos, e vemos Ela passar, longa, prateada, ligeira, com força e com rostos nas janelas – rostos curiosos para aquele núcleo de vida que nos prendia numa esfera banal, mas que também olha para fora.
Meus amigos tinham as mãos nas faces, tentando esconder suas imagens; tentando preservar, cada um, a sua vida.
E ele não teve esse medo? Não temeu a morte ao cruzar a linha tênue e fatal?
A família chagara; explicavam as condições: Antônio era surdo, tinha filhos e netos que agora cresciam em langor, numa sinfonia de grunhidos e lágrimas. “Ele era surdo”; “Ele era velho e deixou bengala em casa”, e a polícia acenava a cabeça em concordância, afirmando aquela certeza de que “em casos assim, não há mais o que fazer”.
Naquele momento em que o sol estava claro e quente, uma nuvem cobrindo o chão, e a filha quis ver o pai uma última vez. Nós, meio criança, meio gente, corremos para junto do cadáver. Esperávamos ver a morte sem máscaras, sem medo e na forma como ela deve ser para aqueles que a têm de forma súbita e num abraço: ensanguentada, deformada, na falta de um olho, um corte profundo no lado esquerdo do rosto – uma meia lua negra – e a pele riscada.
A filha gemeu ao corpo descoberto, o papelão arrancado como uma pele – ele ali ao chão – e eu vi o velho que tinha um sorriso calmo e límpido, com sobrancelhas arqueadas numa solenidade de quem dá adeus, e assim me parece o que é um homem no trilho.