Às vezes, a gente não acha; às vezes, sim – Lazarus Silvestre

ela II

Eu saberia dizer da chuva. Há dois dias que procurava nossa velha sombrinha, aquela do natal, embrulhada para ser surpresa e que veio a calhar no inverno. Pois olhei pela vidraça e o céu me respondeu com um ronco, com o choro de um Deus. Ia chover.

Já previa a pele úmida e pegajosa e aquela coisa de escorrer água aos tornozelos, provocando arrepios na espinha, e, assim, bati apressado o ponto e fugi da repartição para um centro de nuvens que pesavam sobre meus ombros.

― Rapaz, como chego no ponto da condução? –, perguntei exaltado, sentindo o vento frio nas costas, a um estudante, também exaltado, fugitivo da circunstância como eu, e o vento nos empurrando pela rua.

― Pegue a Zequinha Freire reta, conte três quadras e dobre na Caldas, à esquerda – começou dizendo: − ande mais um pouco e vire na primeira, novamente à esquerda. Em cem metros o senhor chega.

Mal calamos e eu segui reto, beirando a calçada, pensando que nunca entendera esse medo da chuva, o asco do alagamento, e, se tem uma nuvem negra é sinal de mau agouro. Carrancas curiosas nas janelas – medindo meus passos com olhos –, as gotículas se formando na ponta dos narizes; crianças que corriam nas esquinas, esperando o ritual das águas, e foi cegamente que dobrei na Caldas. Não. Agora vi que nomes de nada me serviam.

Uma rua nua, sem automóveis e uma calçada estreita de cimento. Vinha um senhor.

― Ei, amigo, uma dúvida: como chego na condução, daqui?

O senhorzinho fez o favor de parar sua marcha. De frente para mim:

― Você pegue a Félix Pacheco e…

― Como? Não entendi.

― Félix! Félix Pacheco. Conhece certo?

― De nome é Grego para mim, amigo.

― Conhece a rua das flores?

Usei o perfume de jasmim e senti a lembrança com um toque leve e despretensioso, que alisou meu rosto. Sabia, sim.

― Sei, sim.

― Pois bem: estando nela, vire no final da rua, à esquerda, e pegue a Treze de Maio. Se o senhor não parar pra nada, nem pra ninguém, acho que chega antes da chuva.

Nem deu tempo do obrigado.

Cruzei mais cinco pessoas que caçavam abrigos. As outras ruas começavam a desertear, solitárias, e as plantas começavam a murchar as folhas. Já pensava em chegar à Rua das Flores e encontrar, esperançoso, uma tulipa vermelha.

Senti aquele vento frio roçar a pele, a nuca. O ar ficava pesado nas narinas. Rua das Flores, Rua das Flores… Dobrei a esquina e fui abraçado pelos primeiros pingos d’água.

O cabelo empastando, a camisa colando nas costas.

Vi o que me pareceu a rua indicada. Já pisava enormes poças pelo chão, onde os pingos faziam estrelas.

Não era. Não era a rua. Fui até seu final e dobrava a esquina quando esbarrei numa moça, que não pôde sufocar o grito de espanto. Tudo veio ao chão: seus papeis, minha pasta. Sua sombrinha pontiaguda fez um risco na minha cabeça, de onde brotou um filete fino e vermelho. Chuva fria e uma gota quente na face.

― Perdão, moço! Perdão! – apressou-se em dizer.

Solicitamente, apanhei nossos pertences, inundados, assim como nós.

― Não foi nada – eu disse. – Me diga uma coisa: sabe como chego na condução?

Resposta em silêncio. Não sabia, pensei.

― E a Rua das Flores, sabe onde fica?

― Não, moço. Olhe, me perdoe!

Ela enxugava meu rosto. O lenço azul agora úmido e riscado de sangue. Olhava-me através dos óculos: retinas negras que brilhavam sob a chuva que invadia.

― Não há problema, mas… sabe ao menos o nome dessa rua? – perguntei e pensei que realmente não fazia mais diferença, eu só saberia dizer da chuva.

― An…se não me falha a memória é a Rua Barbosa. A propósito, sou Antonieta.

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