Ela, de Alisson Carvalho

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Foto: Ronald Moura

A vigésima primeira vela apagou, não foi a brisa de verão, foi uma dessas rajadas sem perdão. Chama é isso, precisa de combustível, é meta de todo ser vivo, um pavio mortal dos santos e dos ímpios. É o apagar do riso, o silêncio do guizo, o afogar do samba, é o findar de toda criança e é a pausa na dança. É o sangue na mão e Ela deitada, inerte, no chão.

Quantas velas ainda se apagarão?

Ela cresceu na marra, foi desviando das metafóricas balas que matam, violentam e massacram. E (sobre) viveu, viveu tanto que aprendeu. Foi alvo de falácias, seu mundo era sempre um campo minado, bastava um passo: explosão e condenação eram as sentenças. Ela foi tudo menos pequena.

Gritou, sempre lutou com todo vigor. Foi lá, alterou a ordem, fez e refez alguns acordes. Ela era rock, era subversão, jamais doçura e submissão. Não tinha o tino para o drama, era o seu próprio traço sarcástico, gostava do confronto, pois queria a desordem naquele mar de tranquilidade.

Teve a vida desnudada, a moral maculada pelas falas, mas estava acostumada. Blindou-se contra o ódio, tinha navalhas na língua para defender quem não tinha voz, quem não tinha sorte. Ela foi algoz do atroz. Incomodou, fez o inferno do torturador. Nunca se calou. Era ruído ininterrupto, o farol do subúrbio, o exemplo presente, era a esperança no mundo descrente.

Abandonou a vitrine sexual, deixou de ser objeto de desejos, quebrou todos os conceitos. Rasgou os papéis sociais, não quis andar nos trilhos, saltou e abiu caminhos. Propôs o novo, quis sair da sombra do passado, saiu, deixou o mundo dos invisibilizados e incomodou. Tornou-se o significado do pecado.

Ela não ficou no passado, fez-se viva, vida. Foi a palavra nunca dita, o alerta na partida. O indício de que é o caminho certo, foi o temor do retrógrado discurso funesto e a vela apagada na marra que iluminou a noite. Foi o gatilho para novas falas. Ela está em todas, é sujeito latente. É você, sou eu e nós no presente. É mulher, bruxa e indecente.

Autor: Alisson Carvalho

Livro: Rascunhos Líquidos

 

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