Um chamado lá fora, de Lazarus Silvestre

Folha verde

O poema me dizia “Estais casmurros, calados entre carinhos cansados e sonhos desanimados”. Eu ouvia a voz rachada do seu Carlos Drummond de Andrade; os olhos serenos por trás dos óculos.

Para isso agora sou bom! São escritores imperdoáveis…

Vejo uma linha torta no chão. Não é visão, é um caminho feito a machadadas. Foi assim aquele beijo, feito fel, amargando uma gota de ar, e olhei a planta no quintal, como quem vê a lua pela primeira vez. Era verde, não o mesmo verde de outrora, dos meus avós, mas era um verde novo, tão verde e mudo feito papel em branco.

Na pequena voz de cigana ela falava da fábula do tronco que se desfez dos filhos por amor. “Foi mesmo?”. Ela pedia silencio ao Junior. Das crianças, ele era o mais abusado, carente, e chamava a atenção para si com perguntas bobas como “Por que o nome é Sol, vó?”.

Shiiii… O dedo seco entre lábios.

Ela dizia que cada pequenino foi abandonado à sorte dos homens, que os levaram embora. Mas naquela frondosa ficou marcada a vida, para que os filhos, já adultos e maduros, pudessem voltar. Foi preciso manter a vida para ter para onde voltar, aqueles que se foram.

Assim é o amor. Uma folha de primavera solta ao vento uma angústia, uma dor, e, passado o inverno rigoroso, nasce novo sentimento pálido. Foi do espaço, da estrela cintilante, que se viram as mais amarelas, vermelhas e frondosos braços, mas o inverno se passa aqui dentro. Ele é visto só aqui, não do brilho de prata da nebulosa.

E assim o amor precisa de regalo, e vai perder uma folha, mas mantém-se viva a raiz e irá florescer uma folha, uma flor, onde se partiu o pequeno talo.

Agora é uma árvore grande essa jaqueira. Era onde vovô dava os tiros de 22, sem fazer risco nem riso no tronco. Só o barulho que espantava os pássaros. Era onde, nas ceias fartas, os primos sorriam gratuitamente, ganhando presentes no natal, riscando o chão com ceras coloridas; era onde os tios riam das piadas, os homens alisando bigodes e mulheres vermelhas, com mão na frente das bocas molhadas, pedindo para não falarem essa palavra “seu saliente”, batendo e beliscando os maridos de olhos fixos nos decotes. A gente só ria, pintava montanhas no chão, brincava.

Eu lia o Carlos porque é poeta dos bons, depois de tanto pelejar no sentimento, mas sentindo ainda a partilha do abatedouro naqueles domingos à tarde; o fedor de gordura no fogão; ouço o grito do animal que foi esguelado ali mesmo na nossa frente, sangue quente sob os pés.

Essa planta verde já troca suas folhas amarelas e secas, abandona aquilo que lhe toma vida para servir de porto para a primavera que virá. Não é o som de folha caindo, seu Carlos, não tenho ouvido de poeta, não, mas é o disparo seco do revolver no tronco largo. É o som seco da campainha, na verdade. Vem da rua, desliza parede adentro.

Levantei da cadeira fria de aço inox da minha cozinha, bati a perna no jarro da única planta que foi trazida há muito pela minha mãe, e não é jaca. Atravesso a sala até a porta da frente, para ver que não era ninguém, só um cheiro doce de fruta.

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