Dia treze de março de dois mil e oito, rabisquei a página. Insurgi contra meu próprio ostracismo, cansei de ser vícios, decidi vomitar. Dobrei o jornal rasurado, vi algumas notícias insalubres, quis ter forças para levantar. Vi espíritos revoltados, amantes frustrados e famílias sem lar, mas eram pensamentos dispersos, coisa de quem não tem mais o que cogitar. Olhei as dezenas de currículos amassados, uma fila de desesperados que jamais conseguiriam trabalhar. Desisti, o suor caia sobre a mesa, mais um dia de tristezas, não cheguei a nenhum lugar.
Gritei internamente, divagando como um doente que desiste da cura:
“É mais fácil, sim, ficar sentado, cantar contente com o rebanho organizado. É simples e confortável não discutir, apenas consentir sem somar. Contrastes exigem mais trabalho e da mistura dos opostos o antigo muda, ganha tonalidades, evolui e transcende.
Entretanto, simples mesmo é não se opor, gritar um “fora Temer” e mostrar ser culto, mas no primeiro debate fugir pela tangente, debalde, oculto. Pregar as simples filosofias e cuspir no popular.
É mais aceitável fugir do problema. Ali, um já se foi, correu, nem quis escutar. Escutar é um obstáculo quando a regra é impor, impopular.
E parar um segundo, perceber o belo no mundo, não é ver o reflexo egocêntrico no espelho do quarto, enquanto o mundo corre. Corri também, tenho que acompanhar, não posso perder o ritmo, tenho que vencer, tenho que passar, tenho que malhar, ganhar aquele cargo, conseguir o melhor lugar, ter uma família, ser, poder e comprar.
É tudo isso, compra. E quanto custa a felicidade? No fim, quando você deixar de se fotografar, perceberá que tudo se resume a consumo, tudo tem um valor. Todos temos um valor. Nos resumimos a nada, uma moeda de troca desvalorizada. O problema é que na comparação, umas moedas brilham e outras nenhum valor terão. Dá até para sentir o peso na cidade. O lado de lá pende com tanta moeda acumulada. O seu oposto mal tem com o que se alimentar, vive do labor e para laborar.
As feridas estão aí, expostas na página do jornal. São tempos sombrios. O outro é sempre o inimigo voraz. E nesses dias de tensão o medo está em tudo, nem adianta cercar a casa e aumentar o muro, eles invadirão. Estão por toda a parte, na tevê, na rádio, na mente e patrocinando o seu medo demente. Surgem nos furtos pequenos, na venda do voto e na sonegação. Eles são perigosos, só aceitam as regras se a eles não houver aplicação. Porque a lei só atinge e alcança os inimigos. Afinal, amigos são amigos, abrandamos com os nossos para mais tarde xingar e cuspir na corrupção.
Eles não passarão!
Passam. Sempre passam. Nós deixamos a porta aberta e, olha, passaram, nem os vimos entrar. Já estão lá, legislando.
Enquanto isso, no lado ofuscado da cidade, muitos morrem sem ter sorte, sem emprego ou diversão. Morrem por morrer, há bandidos fardados ou não, eles perseguem quem não tem a sorte na pele. Sim, ninguém fala, mas bandido tem cara e cor. Morre todo dia na periferia, sem o refletor da mídia, com o pranto da mãe e um velório prematuro. Nem sempre o filho chega à puberdade desse lado da cidade.
Na catedral do consumo, no shopping center, cliente é rei, um escravo compulsivo da novidade. Lá não se fala, mas existem clientes perfeitos e os possíveis bandidos, gente sem direitos. Por isso, é melhor chamar o segurança, prevenir-se desse perigo, do estereótipo, do furto certo que não tem sobrenome e sangue azul.
Apropriaram-se do corpo feminino, derramaram na mulher dogmas de machismo, fizeram dela um risco. Ela nunca quis ter filhos, o problema nem era a maternidade e sim os efeitos colaterais adjacentes que vinham com o parto: escravidão doméstica, jornadas intermináveis de trabalho, assédio moral do conjugue e da prole. Foi também o olhar agressivo, um tapinha de leve que virou um soco no rosto e o corte no coração. Gostava mesmo era da liberdade, estudar e ler com tranquilidade, mas foi transferida da mão do pai para o punho do marido e estagnou.
Nós vimos e ouvimos os gritos, mas ninguém mete a colher, nada foi dito, o silêncio imperou. É sempre mais fácil ignorar, afinal essa atitude blasé, a indiferença, é o nosso maior dom. Fingir ser desconstruído, não ligar para nada, debochar do mundo, ser venenoso, raso, esdrúxulo e ironizar por ironizar sem nenhum motivo. Vamos escutar cada palavrinha, refletir, discutir para mais tarde rir e divagar sobre a próxima bobagem que nos interessar na mídia. Admita, somos a manifestação do ócio, nunca agiríamos, porque é isso que te faz gozar. É isso que deve ser sonhar.”
Apertei a gravata, limpei o suor do rosto e abri a porta. Congelei um riso nos lábios e repeti a fraseologia decorada para atender os novos candidatos, eram como camponeses buscando a própria independência, buscando o emprego, vencendo os seus demônios internos, os seus algozes. Todos ávidos, esperançosos, mas que sairiam dali como entraram: desempregados.
Autor: Alisson Carvalho
Livro
Rascunhos Líquidos (2018)