A casa, de Lazarus Silvestre

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     A casa me pareceu igual, mesmo num pequeno detalhe, desde a primeira vez que a vi, há trinta anos. Não sei se os olhos, pouco firmes e mais opacos, enganavam-me, mas percebi que algo mudara, como uma pintura renovada em branco. Por muito tempo ela teve aquelas paredes craqueladas, entre amarelo e poeira, além da grande árvore que sombreava o lado esquerdo e que fora arrancada. Aqui, do lado de fora, há forte movimento de carros e outros veículos, no tráfego. Daí a pintura reforçada, para deter fuligem de descarga, mas ainda é a mesma, como um coração velho que, depois de tanto viver, ainda está inteiro.

     Perdi o número de vezes que cruzei sua frente e só hoje me dei conta das pequenas e leves mudanças. É que na pluma instável e fluida notei os detalhes, as correções – talvez melhores – nas diversas paisagens que me tocavam os pés, os olhos, os cheiros e a memória. É na correria do dia a dia que perdemos a percepção imediata das coisas e só notamos algo quando precisamos recorrer ao passado. Assim é quando vemos a foto do aniversário da tia Adélia e todos bem novos, com roupas infantis, e tia Adélia jovem e viva. Sem sentir mesmo, alguns cabelos brancos fazem festa na luz do dia e tia Adélia há muito nos deixou e vive na saudade.

     É quando vejo a casa, que parece nova, mudada essa porta de uma enorme chapa de madeira maciça para outra de ferro, com vidros. A calçada bem diferente, com sotaque de modernidade: azulejos coloridos, com pedras em cor marfim ou cinza e desenhos esculpidos em relevo entre arranjos e flores em ramos. A pequena praça já não cheirava ao mato, aos ramos, e os bancos largos, onde casais conversavam intimamente, são estruturas de concreto tão seco e frio.

     Até chegar aqui, tomei o metrô da cidade, cruzando ruas, mercados e áreas de plantação. Só hoje vi que o rio estava seco. Na passagem, com a ponte estreita sob o trilho, a sensação era que levitávamos de uma extremidade a outra da ribanceira. As pequenas casas ao redor, onde se viam pessoas isoladas, sentadas em bancos, entre mata virgem e um lago que refletia nuvens de tão límpido, agora eram aldeias construções de tijolo a cal, sem pinturas e as paredes úmidas e vermelhas.

      Em frente às casas, passa uma avenida, outro toque da modernidade, e todo aspecto simples foi trocado por uma camada escura de descarga. Quando o metrô flutuou dobre o Poty, lá estava uma extensão de terra, já bem calçada, de integração para outras ruas e aquela velha paisagem já se fora há muito.

      No centro, fui direto ao coração das lembranças. Aqui, sim, há uma coerência com o passado. Prédios antigos, o nosso cinema, o bar, o café. Muita coisa não funciona e o cheiro de livro velho se sente ainda por muito tempo. Entrei. Uma antiga máquina de café, daquelas que fervem água e fazem os melhores expressos. Era hora.

      ― Bom dia, senhores.

      ― Bom dia, bom dia…

      ― Gonçalo, um café, meu amigo.

    Mexer na máquina era uma arte. Éramos quatro curiosos, e os tubos metálicos brilham e o som de água fervendo, e o cheiro inconfundível de grão de café. E levanta tampas, gira manivela, aperta botão.

    Dois ou três clientes entraram. Tomávamos cafés, e aquela conversa. Os clientes são sempre os mesmos – algo que não muda há trinta anos. Eu sabia por que o Gonçalo me contava sobre os casos e manias de uns. Ali se mantêm a conexão com o passado e se houveram mudanças, não foram trágicas, como se arrancam árvores em esquinas. Acho que… senti um toque no ombro.

     ― Uma moeda, moço?

    Um rapaz magro, roupa longa. Apertava os punhos. Senti uma voz fraca e desconfiada. Seu olhar era mentiroso, como um espelho côncavo.

      ― Não disponho, sinto muito.

   O rapaz saiu perguntando no balcão, aos outros clientes, pessoas mudadas, pouco dinheiro envolvido. O franzino saiu, chutando pedras.

    ― Ei, isso não muda nunca –, disse Gonçalo. – Esse rapaz vem praticamente todos os dias e isso há um tempo. Mas antes dele houve outros, e outros, e outros, iguais em miséria e mendicância.

     Aí, sim, uma paisagem indigesta.

    ― Tem-se que tirar mendigos das ruas, é preciso.

    ― Fazer asfalto sobre eles?

    ― Quê?

    ― Nada, amigo, desculpe.

    Paguei o café, saí.

   Na porta de vidro, num galpão abandonado, vi o rosto cansado no reflexo, uma pele amarela. A janela onde pendia um galho florido, uma porta envernizada e um peso nas costas, o ar fino seco, e tia Adélia a esperar na casa que continuava quase como sempre foi.

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