Cabeça de Cuia – Lendas Piauienses

Olhou o balde vazio. Nenhum peixe sequer o rio Parnaíba mandou. Há tempos que não mandava. O cansaço era demasiado, o mesmo tanto do calor do sol de meio dia de Teresina. Desistiu de ficar mais tempo ali, segurando a vara de pesca. A barriga já embrulhava uma fome acumulada de dias. Recolheu todo os seus instrumentos de trabalho. E foi arrastando os pés descalços e rachados até sua casa. Resmungou o caminho inteiro. Sem ter ninguém por ali para ouvir ou se compadecer. Ele sempre foi assim mesmo, resmungão, ignorante, cara de poucos amigos… Por isso mesmo, nenhum amigo.

Passou pela porta da frente da casa e jogou tudo que carregava num canto do que servia de sala. Sua mãe surgiu com uma simpatia e voz angelical que ele nunca entendia. Como pode, naquela pobreza toda, naquele calor e escassez, aquela velha senhora insistir em trata-lo bem? Naquele dia, pensar de novo nisso o irritou além do normal.

– Crispim, meu filho, fiz sopa de ossos ‘pro’ almoço. ‘Tá’ uma delícia…

“Sopa de ossos?”, Crispim pensou. Engoliu em seco. A fome latejava na barriga. O suor, de um dia de trabalho sem resultados, escorria. Desejou nem ter ouvido o nome da comida… Ossos era basicamente só o que eles comiam há semanas. E era osso de outras comidas, resto do resto do resto. E jogava esse resto para dentro da boca há dias.

– Crispim, meu filho, olha, fiz teu prato. Deixei o maior osso ‘pra’ ti…

A mão velha da senhora sua mãe tremia o prato enquanto era colocado na sua frente. Crispim nem sentado estava ainda. Olhou o prato e viu o osso. Conhecia o formato do osso. Osso velho. Do resto do resto. E um ódio brotou de dentro de Crispim de um jeito que nunca tinha sentido antes. Agarrou o osso grande de dentro do prato e, com a força do ódio que sentia, jogou no rumo da sua mãe. Acertou a cabeça grisalha dela em cheio. E um grito de dor se alastrou no tempo de um só instante.

O susto do grito da mãe o acordou do ódio que sentia. E num piscar de olhos, o que ouviu da boca da velha definiu toda sua existência:

– Filho ingrato! Como pode fazer isso com tua própria mãe? Estou morrendo por ti, Crispim! Por tua causa! Ah, mas tu ‘vai’ pagar com uma eternidade de sofrimento! Vai passar o resto da vida como um monstro lazarento! Vagando pelas águas do Parnaíba e do Poty, sem ter fim. Só escapará dessa maldição se devorar sete Marias virgens! Mas já te asseguro que nunca encontrá! Então, Crispim, fica amaldiçoado pelo resto da vida!

A cada palavra da mãe uma dor forte retumbava na cabeça de Crispim. Sentia a dor, como se a pancada do osso tivesse sido em si mesmo. Enlouquecido com as fortes dores na cabeça e com a imagem da mãe morta a sua frente, Crispim saiu da casa cambaleando e desorientado. O tempo de Teresina escurecia de forma surreal, em pleno meio dia, um nublado tomou de conta. O rio Parnaíba se agitou. E uma ventania acabou puxando Crispim para as margens desse rio. Lá ele acabou se jogando, como quem tenta se livrar da dor que sentia, como quem quer dar fim a própria vida.

Mas ele não morreu. Nem naquele fatídico dia do assassinato da própria mãe, nem nesses dias, tampouco nos próximos. Ainda ouve a voz da maldição latejar na cabeça. A cabeça que doeu tanto que acabou crescendo e se transformando numa imensa cuia. Transformou-se, então, num monstro repulsivo que habita os rios que passam pela capital piauiense. E assombra a população ribeirinha ou quem por ali passar. Afoga quem nada e passa por onde ele está. E espera por alguma Maria virgem, para devorar. Em parte, por acreditar que pode acabar com a maldição, mas em grande parte por desejar, no fundo do seu coração ignorante, algum perdão de alguma Maria… Algo que esperava, na verdade, da sua própria mãe, mas que dela sabe que nunca terá.

Escrito por Evilanne Brandão.

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