Carpe Ira, de Eduardo Galvão

Os filhos guerreavam com palavras ditas aos gritos. Os gritos explodiam nos ouvidos dela numa cadência gradativamente mais perturbadora, como uma orquestra tocada por demônios. Ela dizia palavras de conciliação – olhos fechados -, mas dizia-as em voz a meio passo do inaudível, intercalando momentos de verbo e de respirações profundas.

Ninguém a ouvia, ninguém a notava, ninguém percebia que a mão que tentava passar a marcha tremia.

Um dia inteiro de estresse constante, contato incessante com outros rostos, outras vozes, outros gritos. Conversas desgastantes. Dores de cabeça e sorrisos forçados. Um dia inteiro de outras perturbações. Um dia de cão; e a soma do dia de cão ao bônus dos filhos só poderia resultar nos acontecimentos que se seguiram à última tentativa da filha idiota de retrucar pela bilionésima vez os argumentos do filho imbecil.

A voz dela explodiu num “cala a boca” gutural. VÃO PRO INFERNO! Ela disse. Veias apareciam por todos os lados. Uma metamorfose deslumbrante. Quem ousou dar outro pio de novo? Quem ousou desviar o olhar daquela figura bestial que podia ou não ser uma mãe?

Ninguém ousou desviar o olhar da mamãe.

Mas a raiva veio como um santo remédio. A raiva a libertou. Os gritos de ódio que vinham da alma, e que distorciam a sua voz, eram o bradar da liberdade.

Ela sentiu o corpo flutuar no exato instante em que se deu o fim do seu quadro de histeria. E tentava reprimir com absoluto fracasso a voz  de prazer em sua mente que ecoava um “que maravilha!”, em alto e inconfundível som.

Ela chorou muito tempo depois. A cabeça e a garganta ficaram destruídas; e a angústia que sentiu por ter perdido a cabeça com os filhos veio mais tarde no formato de uma lâmina afiada que fazia pequenos cortes em seu coração.

Apesar de tudo, ela sabia, sem que a mente ou a boca precisassem formular palavras, que aquele havia sido o momento mais delicioso e sincero de toda a sua vida.

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