Gosto de ver o tempo passar, e comemoro isso que, em certa medida, é um conforto. É saber que respirando ainda, vive-se. Ignoro os erros – e é irrelevante prender-se a eles e aos acertos –, pois quero permitir só o presente, que é a porta de entrada para o agora e relega os outros aspectos aos porões da vida.
Mas o que são as memórias…
Revisitava os porões, não da vida, mas dos arquivos, algo necessário de um em um ou de dois em dois anos, ou de meia em meia hora, e vi blocos de anotações e o espanto de me ver no passado através dos escritos; vi objetos materializados em sentimentos e perfumes; encontrei, também, uma revista, e lembrei:
Era janeiro de 2016. Naquele dia, arrastava os pés e perdia uma linha de texto a cada meia hora. Estava down, bem down. Via o dia dark, bem dark, mesmo no sorriso da secretária, na música fugindo dos fones do passageiro ao lado, mesmo no sol claro e alto. Era um darkésimo, como o amigo desnomeado do Caio Fernando Abreu, de Deus é naja. Estava em janeiro e em pouco mais de trinta dias seria a data de vinte anos da morte desse autor, tão recentemente e tardiamente admirado. E nem só isso: ontem falecera David Robert Jones, o David Bowie.
Recebi, às cinco da manhã, o áudio de uma amiga chorando, suspirando a morte do ícone da música pop, da moda, do cinema. Li cabisbaixo as dezenas de notícias que navegavam mundo. Isso me deixou para baixo. Agora, depois de outra linha de texto perdida, sem acertar a veia da narrativa, os personagens fugindo do meu foco ocular, abandonei a mesa e fui caminhar nas ruas do centro a algumas quadras dali.
Na Praça PII, tocava as cortinas de revistas na banca do Joel. O sol dourava o desenho do raio em seu rosto. Senti náusea e fervor, com a belíssima a capa da Veja com o Bowie. Foi quando se aproximou um dos vários indigentes que ficam nos bancos. Roupas sujas, cabelo empastado para trás. Segurava a armação de alumínio de um guarda-chuva, limpo de qualquer tecido.
“Me dá um cigarro?”, perguntou, quando estava bem próximo.
Parei de fumar faz tempo, mas respondi com um não da cabeça.
“Um trocado? Cinquenta?”. Voz rouca e áspera, como o lamento de um moribundo.
“Amigo, tô mal”, disse, mudando o tom de voz para mim. “Três dias bebendo, fumando, um lixo”. Sentou-se na minha frente, quase caindo, olhos bem tortos e dedos amarelados de gordura e fumo.
“Estou fraco. Tomei um caldo, mas não aguentei, botei tudo pra fora. Tudo por causa da mulher”.
Fiquei mais apreensivo, um coração batendo como os tremores daqueles lábios arroxeados.
“Que mulher, amigo? Do que…”, nem terminei.
“Ela é a mãe dos meus filhos e grskfk dsrijnds fodc”, fala com rigidez e com palavras tossidas, com sorriso alto, assustador. “Eu a amo, porque é a mãe dos meninos. Ela foi embora, alguém botou coisas na sua cabeça, sabe”.
Começa um choro, passa a mão no rosto, agora bem melado. Recompõe-se. Eu quieto: espectador de casos de amor da vida.
“Amigo, já vou, estou meio atrasado”, foi só que saiu de mim, fiquei na dúvida se estendia uma mão. Já pagava a revista quando ouvi um vá com deus, e ele virando-se, desalento no rumo em frente, calcorreando além da calçada antes que o carro atingisse suas pernas.
Foi forte e feio. Ficou ali no chão sem mover um músculo. Igual a mim. Só pude sair sem olhar para trás, esbarrando nas pessoas que amontoavam a praça.
Agora aqui, com a revista nas mãos, e lembrando-me dele que já não vê mais o tempo passar, e as memórias são…