Aquilo era chuva? Dona Maria mal acordou e já colheu os sinais do tempo, ela não conteve o ânimo. Espreitou o céu com um falso desdenhar de quem simula odiar uma grande paixão. Estava quase certa, eram nuvens de chuva, daquele aguaceiro que alagava a rua inteira e deixaria uns vinte meninos ilhados.
Quanta saudade, pensou. Quanta vontade de vestir as roupas pesadas, de se adornar toda para ir à missa, enrolar-se no cobertor nas noites frias e fazer um chocolate quente. Chocolate? Talvez uma xícara de café ou uma sopa bem quentinha seria a solução gastronômica para o frescor das noites. A brisa atípica era o sinal preciso, logo as gotas da chuva se desprenderiam da represa alada.
Dona Maria mantinha o mesmo ritual diário, desde antes dos filhos abandonarem o lar materno. Ela acordava bem cedinho, não tinha amores pelos relógios e preferia se guiar de acordo com a programação da televisão, então acordava antes do primeiro noticiário e corria para o chuveiro. Ficava quase uma hora relaxando sob a sua chuva artificial chamada chuveiro.
Seu amor pela água foi herança materna, pois as mulheres da família tinham um apreço doentio por rios, lagos e praias, tanto que o estanho vício correu as gerações, durante muitas décadas, no formato de anedotas, contadas, principalmente, pela boca satírica do patriarca da família, Seu João.
Era só nascer uma menina na família que o velhote se derretia de amores e dengos, além das muitas risadas fatalizando o futuro das mulheres. E ele fazia questão de visitar a recém-nascida, beijava a testa da criança e recitava o seu enfadonho poema autoral intitulado de “poema das águas” destinado às mulheres da família. O ancião nunca errou, bem ou mal as mulheres absorveram a crença e fizeram daquilo a sua identidade. Geralmente eram voláteis, cultura que acabou deixando sequelas profundas nos homens, quase sempre abandonados.
“Dane-se”, disse a última mulher antes de sumir no mundo sem deixar rastros.
Dona Maria assumiu o lado aquático pouco explorado da família, gostava dos mergulhos profundos. Diferente dos prognósticos do tataravô ela teve uma vida bem caseira e tratou de viajar apenas nas leituras das fotonovelas e posteriormente das telenovelas. Seus dois filhos seguiram a carreira acadêmica e se desprenderam da mãe rapidamente. Dona Maria nem tinha cabelos brancos quando a casa ficou mais silenciosa, o silêncio foi preenchido com as suas cantigas e gargalhadas. A casa pequena tinha o ritmo da dona e para ela era como um casulo, a sua ostentação, talvez o seu bem mais precioso.
Os olhos da octogenária brilhavam quando a noite devorava o dia e, principalmente, quando a procissão passava na porta da sua casa. Admirar o santo passando erguido pelos braços masculinos dos fiéis era a melhor das sensações. A janela da Dona Maria era o espaço de socialização da cidade, local das reuniões mais disputadas pela vizinhança. Uma pequena multidão se formava na calçada da Dona Maria, passavam as noites conversando sobre a vida cotidiana e sobre as mínimas mudanças, ritual quebrado apenas pelo início da telenovela.
O único “dane-se” dito pela Dona Maria foi dado ao convite feito pelos filhos para abandonar Oeiras, ela era apaixonada pela sua terra natal, lá estavam os seus ancestrais, eram para eles que ela acendia as suas velas.
Um dia o “relógio biológico” da cidade foi agitado, um fato novo seria adicionado às conversas noturnas. Dona Maria preparava-se para regar as suas samambaias e palmeirinhas, tarefa religiosamente desempenhada um pouco antes do sol se pôr, mas naquele natal algumas palmas romperam o silêncio da sua casa, ecoando, oscilando pelos cômodos e perturbando a calmaria da audição da proprietária.
Quem seria? Ela caminhou até a sala de visitas e espremeu-se na janela. Uma lágrima venceu a monotonia da tarde. Os filhos e netos pularam de alegria identificando a avó encostada nas grades da janela. Dona Maria foi invadida por uma explosão de euforia e riu.
Autor: Alisson Carvalho
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