O filho

Fotografia de Regis Falcão (5)
Fotografia de Regis Falcão

Cinco e meia, ainda estava cedo, daria tempo para descansar mais dois minutinhos? Dois minut…? Dois…? O despertador atrapalhou o questionamento letárgico do rapaz, ele olhou assustado e incrédulo para os ponteiros. Que droga, seis e cinquenta? Ergueu-se subitamente, nunca tinha sentido um chão tão frio e os cobertores pareciam tão macios, tão confortáveis, tão atraentes que o chuveiro poderia esperar só mais um minuto deitado. Conteve-se e apressou-se, hoje não era dia para atrasos. O cheiro do cuscuz matinal perfumava toda a casa.

A cara de sono era visível, não tinha o que esconder e mesmo assim ele formulava algumas desculpas sobre o seu atraso, provavelmente seria a décima desculpa do semestre dada ao seu patrão pouco amistoso. E o que importava? Era apenas um emprego, um emprego como qualquer outro, mas justamente hoje? Logo no dia de pagamento ele chegaria atrasado, entraria cabisbaixo, passaria pelo gerente arrogante que soltaria uma das suas piadas ferinas. E Se fosse possível, caso acontecesse um milagre qualquer e o seu corpo fosse transferido instantaneamente para o seu local de trabalho, imaginou.

Imaginou tanto que perdeu a sua parada, quando se apercebeu do infortúnio apressou-se e correu para a porta do ônibus, não percebeu que para o espaço calculado de uma pessoa tinham três passageiros ocupando desesperadas os pequenos vazios e rezando para não perderem os seus empregos. O rapaz amaldiçoou o mundo inteiro pela má sorte, mas conseguiu descer do veículo, depois de derrubar alguns passageiros para conseguir sair dali. Uma dúzia de pessoas aproveitaram a sua ausência para xingá-lo.

Seu nome pouco importa, ele é mais um na massa de trabalhadores que perderam a expressão, perderam a individualidade para desempenhar um trabalho padronizado. O rapaz olhou para o relógio, entrou na loja e tentou se camuflar entre a freguesia para evitar o julgamento dos colegas, mas deu de cara com o gerente. Censurado pelo seu superior o rapaz não teve escolha, foi advertido educadamente sobre os perigos de mais um atraso e sobre a quantidade absurda de currículos entregues diariamente.

Engoliu todas as ameaças cruas, ignorou cada palavra dita. Notou que o dia estava mais frio, olhou pela vidraça do estabelecimento e viu o céu nublado. Lembrou-se do aniversário da sua mãe, depois do expediente iria ao Shopping comprar alguma lembrancinha, melhor, depois de pagar as contas com o seu salário procuraria algum presente. Suspirou, há muitos meses seu salário só servia para pagar as contas, então teve a ideia de vender uma parte do que ganhava para o transporte e alegrou-se. Sua mãe teria um presente seu.

O problema maior era a dor que dava no peito vendo todo mundo levar presentes para a mãe e ele de mãos vazias, desculpando-se por não ter como agradecer todo o carinho e cuidado que ela tinha com o filho. E, sendo ele o filho, a dor misturada de culpa e decepção se intensificava naquele dia.

O dia não passou tão rápido como ele esperava, pelo contrário, cada segundo arrastou-se como se fossem horas e a falta de movimento no estabelecimento criava uma áurea de desanimo que destruía a alegria até dos sempre sorridentes funcionários do setor motivacional. E isso alegrava todos os outros funcionários, ver a tristeza daqueles sorrisos forçados era reconfortante.

O pagamento não caia na conta bancária como nas demais empresas, pois há tempos o chefe do estabelecimento tivera um desentendimento com o gerente do seu banco, do outro banco, do outro banco, do outro e do outro. De tal forma que passou a não confiar em nenhum mediador para o pagamento dos seus funcionários, tampouco guardar o produto do seu lucro em agências bancárias, comprou um imenso cofre, cavou com as próprias mãos um enorme buraco e colocou tudo no invólucro metálico. Isso alegrava profundamente sua prole que costumava demonstrar o carinho pelo pai visitando-o, quando este estava ausente, obviamente. E saiam sorridentes com seus bolsos recheados de notas coloridas.

O patrão chamou os funcionários, um por um e separadamente. Tinha o salário do mês separado por envelopes, todos divididos por cores, cada função tinha uma cor específica. O nosso protagonista sem nome foi o penúltimo a ser chamado, ficou na sala escutando o sermão do seu chefe, mas o foco não estava no patrão e sim nos dois envelopes, um tão gordo e soberbo com o nome do gerente, o outro quase vazio e com o seu nome escrito. As palavras ecoavam pela sala sem serem apreendidas pelo rapaz que só pensava na injustiça daquele salário.

Ele abandonou a sua faculdade para ajudar nas despesas da casa, refletiu e imaginou-se estudando. Há quanto tempo não se sentia desafiado intelectualmente? Seus pensamentos ecoaram e o homem que apenas brigava silenciou, percebeu o olhar vazio do rapaz e viu que seria inútil tentar ensinar aquela alma medíocre, entregou o envelope ao seu dono e mandou que chamasse o seu colega de trabalho, o gerente.

Enquanto guardava o envelope amarelo o rapaz apressou-se, teria uma chance de pagar as suas dívidas se fosse ao Teresina Shopping. Não escutou os gritos do patrão alertando que o envelope azul tinha sido roubado ali debaixo dos seus olhos. Saberia no dia seguinte da confusão caso amanhecesse vivo.

Seu relógio e consciência pesavam, em poucos minutos não poderia pagar os seus boletos em dia, tremeu de medo, pois aquele era o último pagamento do acordo feito com o banco para pagar uma dívida que se arrastou durante três longos anos. Hoje ele se livraria da tal dívida e compraria, finalmente, o presente da sua mãe.

Entrou apressadamente no shopping, quis correr, mas segurou o impulso. Passou e parou na praça de alimentação, seu estômago pedia, falava, gritava por comida. Seria loucura consumir uma comida daquele lugar, arriscou e entrou numa fila. Sentiu-se importante, era todo mundo muito diferente, aparentemente de outra classe social. Tremeu quando chegou a sua vez, não sabia o que pedir, mas olhou para o cardápio e pediu a primeira coisa que viu: Esfirras, sim, esfirras, quatro, sim, com refrigerante.

Recebeu uma senha e esperou todo orgulhoso, levaria duas das tais esfirras para a sua mãe que provavelmente olharia aquilo desconfiada e depois de beliscar devolveria o presente e, claro, ele comeria tudo. O pensamento foi interrompido pelo chamado da senha, era a sua vez, correu e pegou as esfirras, sentou-se, colocou a comida sobre a mesa, deixou o envelope com o seu salário em cima de uma das cadeiras e quando preparou-se para morder o primeiro pedaço da iguaria sentiu um forte impacto.

Um jovem de paletó puxou o envelope e correu. Levou só alguns segundos para o rapaz perceber que tinha sido roubado e imediatamente ele saltou da cadeira e correu, começou a perseguir o autor do furto que corria na direção da entrada principal do shopping.

As suas pernas tremiam, o cansaço foi substituído pelo desespero, três anos seriam perdidos, o salário do mês inteiro, o esforço do labor, tudo ruía a cada passo. Ele clamou por uma ajuda divina e consegui alcançar o vigarista. Ambos passaram pela porta automática e o rapaz sem nome saltou em cima do bandido, arrancou o envelope das mãos que o furtaram e ergueu-se. Sentiu-se aliviado, pôde respirar de novo, mas dessa vez foi assaltado por um estranho ardor na nuca, ou no peito, não soube dizer de imediato.

A visão do rapaz escureceu, sentiu um formigamento no corpo inteiro, um barulho diferente, alto e diferente. Que barulho era aquele? Olhou para as suas mãos e viu sangue, deixou o envelope cair, não conseguiu se mover,mas conseguiu ver o bandido pegar o envelope e colocá-lo no bolso do paletó. Tentou encarar o vigarista, o rosto incomum, os olhos azuis e o cabelo dourado eram inconfundíveis, nunca esqueceria aquele rosto, aquelas vestes elegantes.

O rapaz caiu no chão, tentaria resistir ao poder da gravidade, mas não naquele instante, naquele momento ele assistiu e consentiu com a força gravitacional, entregou-se ao chão com tanta devoção que sentiu-se colado ao concreto. Antes do seu último anoitecer viu o chão pintado de vermelho, sentiu que ele era parte daquela obra, tentou alertar o segurança que portava com uma das mãos uma arma, tentou pedir ajuda para capturar o bandido que, por  mais estranho que pareça, conversava amistosamente com outros seguranças. Não compreendeu. Reuniu suas forças e tocou o peito, percebeu o rio de sangue que brotava do seu corpo, aquela dor que fazia os olhos pesarem e um sono semelhante ao das manhãs de segunda começou a invadir os seus pensamentos turvos.

O rapaz sentiu o cheiro da sua mãe, o seu perfume preferido, parecia escutar a voz materna, percebeu uma pequena multidão se formando, o eco das vozes condenando um tal bandido que fora baleado, se pudesse teria se erguido para verificar se não estavam falando do mesmo vigarista que furtou o seu salário. Eles descreviam o tal bandido, não parecia com o bandido que havia furtado o envelope amarelo. Assustou-se ao imaginar que poderiam ter confundido tudo, que poderiam estar falando da vítima e não do algoz. Sentiu-se um outsider e chorou enquanto o reduziam a uma única característica.

Se pudesse falar teria dito, teria se defendido, teria pedido que olhassem as provas, as filmagens antes de atirarem com aquelas ríspidas palavras, mas eles não viram um trabalhador correndo, viram um grupo, um grupo representado por um único indivíduo, um grupo que eles consideravam culpado. No dia seguinte encontrariam o envelope azul sob a mesa do patrão do rapaz sem nome. Disseram que o “elemento” fora alvejado em flagrante delito, que o tiro fora uma ação meramente preventiva. Ele tentou gritar, mas só saia sangue, desistiu do empreendimento e quis apenas dizer aos ouvidos maternos que ele a amava e que amanhã comemorariam o aniversário dela, tentou lembrou-se a última bênção dada pela manhã, mas faltou forças e

Autor: Alisson Carvalho

 

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