Esperança Garcia

Esperança Garcia por Valentina Fraiz (2015).

Esperança Garcia foi uma mulher escravizada que viveu no Piauí, acredita-se que ela nasceu em 1751, ela pertencia aos padres jesuítas, que ao serem expulsos do Brasil pelo Marquês de Pombal, foi entregue ao governo do Estado e levada à Fazenda de Algodões, na região de Oeiras, aproximadamente a 300km de Teresina, onde hoje fica localizado o município de Nazaré do Piauí. Ganhou o título de primeira advogada do Piauí concedido pela OAB-PI, devido a coragem e obstinação, denunciando os excessos e maus tratos cometidos pelo feitor da fazenda. A carta escrita pela escrava endereçada ao governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, é considerada uma das cartas mais antigas do Brasil e desafiadora, escrita e assinada pela mão de uma escravizada no final do Século XVIII.

Nome Completo: Esperança Garcia

Descrição: A primeira advogada do Piauí

Data de Nascimento: 1751

Local de Nascimento: onde hoje fica o município de Nazaré do Piauí

Data de falecimento: (não se sabe ao certo)

Local de falecimento: (não se sabe ao certo)

Carta

“Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.Sª. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q.

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

Carta com léxico atualizado

“Eu sou uma escrava de V.Sª. administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, onde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.Sª. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda onde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

De V.Sª. sua escrava, Esperança Garcia”

As condições dos escravizados

No período cuja carta escrita por Esperança Garcia foi datada, existiam poucas mulheres que sabiam escrever, além disso os escravos eram proibidos de serem alfabetizados. No século XVIII existiam 18 escravizados trabalhando na fazenda de Algodões, desses o mais velho tinha 73 anos e o mais novo 1 ano, sete possuíam mais de 30 anos e seis menos de 8 anos. Era lá que ficava a administração central da inspeção de Nazaré. Os escravizados moravam em senzalas, que eram casas de palha e ficavam apartadas das casas dos inspetores. Essas moradias eram mais como ranchos, nem sempre finalizadas, tinham o piso de “chão batido” que no período chuvoso virava um lamaçal. Os escravizados dormiam em redes que eram fabricadas pelas trabalhadoras, os seus cobertores eram feitos com o mesmo tecido fornecido para os “suadouros” dos cavalos. As condições insalubres nas fazendas eram absurdas, tanto que era comum crianças, mulheres e homens serem acometidos com vários tipos de enfermidades, eles quase não possuíam vestes, andavam quase nus. Alimentavam-se, basicamente, de carne de gado seca e farinha.

Os desafios da época

A coragem de Esperança Garcia é lembrada por ter desafiado as leis da época, além de todas as dificuldades vividas, as mulheres sofriam constantemente abuso sexual, tiradas muitas vezes dos próprios maridos, punidas quando se recusavam a cooperar com os maus-tratos. Enquanto os índios eram aos poucos dizimados, acontecia um processo de mestiçagem forçada ou espontânea, o resultado dessa miscigenação foi o aumento desses descendentes que passaram a ser a maioria da população. E, segundo Santos e Kruel, existiam dois grupos: as pessoas livres (sesmeiros, sitiantes, vaqueiros e posseiros) e as escravizadas (índios, negros e mestiços). Para aumentar diminuir o poder dos grandes proprietários e aumentar o poder da Coroa foi constituído a freguesia Nossa Senhora da Vitória do Brejo da Mocha,  depois passou a condição de cidade, posteriormente a capitania ganhou o nome de São José do Piauí tendo como capital Oeiras. Depois da dispersão dos índios e a ocupação dos currais, Marquês de Pombal, em 1760, expulsa os jesuítas, e os bens dos missionários são transferidos para a Coroa. Nesse período tinha um escravizado para cada três homens livres e os cativos eram basicamente constituído de jovens, considerados na faixa etária produtiva. No Piauí os escravizados tentavam resistir contra a sua condição, aspirando a liberdade, não é por menos que Esperança Garcia tentou denunciar os abusos sofridos.

Uma carta incomum

As informações sobre o Piauí Colonial são escassas, mas acredita-se que a carta original, escrita pelas mãos de Esperança Garcia, esteja em Portugal, o pesquisador Luiz Mott encontrou a cópia da carta no arquivo Púbico do Piauí. O documento foi escrito no dia 06 de setembro de 1770, endereçado ao governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, Esperança Garcia tinha 16 anos de idade. O conteúdo da carta trazia relatos a respeito das condições vivenciadas nos trabalhos e os maus-tratos praticados pelo inspetor Antônio Vieira Couto, após ser tirada da sua fazenda se origem. Ela descreveu as tormentas vividas, como seu filho e ela eram torturados, que era amarrada como um animal, que já caiu de um penhasco enquanto estava amarrada e quase morreu nessa ocasião, além de serem proibidos de batizar os seus filhos e de se confessarem. Esperança Garcia não exigia a liberdade, mas não ser violentada, além de poder praticar a sua religião. E as características do pedido que apontava para a violação do direito a religiosidade foi considerado não apenas uma carta, mas uma petição, que foi usada para punir os seus agressores.

Resistência e fuga

Depois da denúncia, Esperança Garcia fugiu para a mata próxima à Algodões, com a ajuda de alguns parceiros, ficou afastada durante um período. Somente oito anos depois da fuga que o nome de Esperança aparece na relação de trabalhadores de Algodões. Mesmo com poucas informações, sabe-se que aos 16 anos a advogada pariu o seu primeiro filho, supõe-se que ela tenha tido outros filhos, acredita-se que ela tenha aprendido a escrever com os jesuítas quando era criança. Esperança Garcia foi uma mulher não só consciente, mas que desafiou a estrutura na qual estava inserida usando as ferramentas que tinha disponíveis para tentar se defender e defender as suas companheiras. E para homenagear a coragem, a força e a esperança dessa mulher, a estilista Patrícia Costa decidiu retratar a história de Esperança Garcia na passarela. A estilista comenta que a alma da Esperança não morrerá e que ela foi uma inspiração para a vida toda.  “Pude compreender Esperança Garcia no âmbito da esperança e coragem de uma escrava que, sabemos pouco sobre como, aprendeu a ler e a escrever e que só queria voltar para casa e ter sua família de volta, batizar sua filha e não sofrer mais violência nenhuma”, diz Patrícia Costa.

Memória viva

Esperança Garcia é o símbolo da luta e resistência, a história da mulher escravizada que desafiou a sua época inspira gerações. Andreia Marreiro Barbosa, professora substituta no Curso de Direito na Universidade Estadual do Piauí e vice-presidenta da Comissão da Verdade da Escravidão Negra e da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos da OAB/PI, foi a idealizadora do pedido de reconhecimento de Esperança Garcia como advogada e ela comenta:  “Pra nós é muito sintomático que o olhar de Esperança Garcia seja um olhar que nos denota tristeza por todas as perversidades que o racismo, o machismo, provoca nessa sociedade que a gente vive, mas ao mesmo tempo que nos inspira esperança para continuar lutando contra essas estruturas, em busca de uma dignidade, em busca de uma vida mais feliz, em busca de um bem viver. ” O requerimento de concessão do título de primeira mulher advogada do Piauí foi feito pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB-PI, presidida por Maria Sueli Rodrigues de Sousa. Esperança Garcia além de referência para o povo foi a inspiração para o novo nome do antigo Memorial Zumbi dos Palmares, agora Memorial Esperança Garcia, que tem a sua imagem e o texto original da sua carta grafitados na entrada do local.

A esperança de um futuro melhor

Não existe nada mais emblemático que um nome que carrega a força como o de Esperança Garcia, que tem uma história marcada por violências, mas também de resistência. A sua história durante muito tempo ficou escondida e esquecida, a carência de informações só confirma o quanto a história também é um instrumento de poder e pode ser contada pelo olhar de quem detém esse poder, ignorar o nosso passado é fortalecer esses discursos que silenciaram e massacraram muitos sujeitos. A professora Andreia Marreiro Barbosa conta que Esperança Garcia representa esses sujeitos que foram ocultados da nossa memória, e ela relembra o quanto é importante conhecermos a nossa história e refletirmos sobre quem somos, construindo uma história a partir do que desejamos ser, com autonomia e respeito às diversidades. Esperança Garcia foi audaciosa, isso não resta dúvida, ela exigiu direitos em um período que os direitos eram negados aos escravizados, sua história inspira até hoje para que possamos construir uma sociedade livre das desigualdades, do racismo e das diversas violências. Esperança para superar as máculas do passado, sem ignorar os nossos erros, mas aprendendo a não repetir, não reproduzir ideias perigosas.

Fotos

Outras fontes

https://cidadeverde.com/noticias/252952/oab-pi-concede-titulo-de-advogada-aesperanca-garcia

http://www.pautajudicial.com.br/noticia/conselho-pleno-da-oab-pi-concede-titulo-de-advogada-a-esperanca-garcia.html

https://www.meionorte.com/blogs/josefortes/a-coragem-da-escrava-esperanca-garcia-103428

http://culturadigital.br/cartaesperancagarcia/esperanca-garcia/

http://www.nazaredopiaui.pi.gov.br/esperanca-garcia/

http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/esperancagarcia

http://justificando.cartacapital.com.br/2017/08/08/mulher-negra-e-escravizada-esperanca-garcia-primeira-advogada-do-piaui/

 

Última atualização: 19/11/2017

Caso queria sugerir alguma edição ou correção, envie e-mail para geleiatotal@gmail.com.

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