Da caixa de memórias, cartas e verdades

IMG_20171111_143912228-01Encontrou uma caixa em cima do guarda roupa da mãe, empoeirada. Lá dentro, uma série de memórias escondidas por anos. Escondidas mesmo, não eram simplesmente guardadas. Havia uma série de objetos formando uma barreira de disfarce da caixa em cima do guarda roupa. Nunca ouvira falar sobre aquela caixa. Mesmo não sendo memórias suas e não tendo autorização para conhecê-las, seguiu sua missão de exploração da caixa.

Entre fotos das quais não reconhecia nenhum rosto, entre pequenos objetos que não saberia dizer porque acabaram guardados ali, encontrou uma série de cartas de amor. Amor, inicialmente, talvez. Muito do amor inicial se transformou em súplica. Muitas súplicas se transformaram em fim.

O destinatário era um homem que não conhecia por nome. Remetente, sua mãe. Depois de ler algumas cartas, descobriu que aquele homem era seu pai. O pai que nunca o pegou nos braços. Que não deu seu sobrenome ao filho. O homem que, depois que recebeu a notícia que tinha engravidado a namorada, sumiu. E todas aquelas cartas ali na caixa foram enviadas, porém retornaram pelos correios com aviso de destinatário não encontrado.

Leu as palavras aflitas da sua mãe, jovem e sem condições de criar um filho. Leu as cobranças das juras de amor que ela recebera antes. Leu as dores e dificuldades vividas nos meses de gravidez. E leu na última carta o ponto final dado por sua mãe, nas seguinte palavras:

“Nasceu um menino forte e saudável, de olhos já abertos – coisa rara, disse o médico. Chorou, mas quando chegou aos meus braços silenciou e me encarou nos olhos. Nasceu meu filho, já um grande homem, que não foge ao olhar da sua mãe. E ele não tem teu olhar. Que bom! Fiquei aliviada. Mas mesmo que fosse parecido contigo, já saberia que não é teu filho. Esse homem que amamento enquanto escrevo essa carta não tem nada de ti. É forte, franco, presente. Será só e somente só meu filho. Ainda bem! Receberá educação e fortalecerá o caráter. Farei de tudo para isso e sei que sou capaz disso, sozinha. Adeus!”.

Lágrimas suas selaram essa última leitura. Agradeceu mentalmente à mãe – que já não era mais viva. Por não estar mais viva, invadia as memórias por ela guardadas sem autorização nenhuma. Desejou ter feito isso mais cedo, mais novo, para lhe falar o quanto se sentia grato. Agradeceu ao universo por ter sido filho somente dela. Toda a curiosidade que sempre teve sobre aquele homem – após ler a carta da mãe – se desfez. Nunca precisou de um homem daquele como pai. Sua referência de paternidade era uma mulher forte e íntegra como nenhum outro homem que um dia conheceu na vida.

Da caixa de memórias, verdades foram lidas. Por fim, devolveu as cartas para o lugar ao qual pertenciam: ao esquecimento. Continuaria construindo sua vida com caráter em honra àquela mulher que escondera naquela caixa aquela série de cartas de amor, súplicas e fim.

* Escrevo e compartilho arte no Leves e Breves: site, perfil no Instagram, página no Facebook.

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